A aparente rusticidade do Cerrado esconde uma riqueza incomum a outros biomas brasileiros ao mesmo tempo em que revela a ameaça sofrida ao longo de anos. Desde a Marcha para o Oeste, o projeto de expansão das fronteiras do País a partir dos anos 1930, o avanço populacional e do agronegócio impactou na destruição de mais da metade da cobertura vegetal original entre 1970 e 2018, de acordo com a ONG WWF.
O modelo de produção do agronegócio tem ameaçado o Cerrado, segundo maior bioma do Brasil. Especialistas acreditam que, se nada for feito, um terço do que restou pode ser extinto nas próximas três décadas. As mudanças climáticas intensificadas pela ação humana põem em risco a existência da flora e fauna nativas e, mais diretamente, os recursos naturais necessários para a sobrevivência das pessoas.
De acordo com o professor do Instituto Federal Goiano, Wildes Rodrigues, o cerrado tem importância pela biodiversidade e pelo abastecimento das principais bacias hidrográficas brasileiras, como da Amazônia, São Francisco, Paranaíba e Tocantins-Araguaia. O geógrafo afirma que a porção da região de abrangência conhecida como Matopiba (palavra criada com as iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) bateu recorde de concentração do desmatamento no Cerrado entre o segundo semestre de 2020 e os primeiros seis meses de 2021.
“Aqui é realmente o berço das águas, é um título biológico e geográfico. O problema é que o desmatamento diminui a infiltração de água no solo e diminui a água que emana sobre as bacias hidrográficas. A vegetação resistente do cerrado alcança altas profundidades com suas raízes, o que facilita a entrada de água no Planalto Central, por isso é conhecido como divisor de águas do Brasil”, explica.
A estiagem comum de maio a outubro está começando mais cedo, pressionando o abastecimento de água da região com a demanda por água para usuários domésticos, industriais e agronegócio. O avanço do setor imobiliário e concentração populacional em algumas áreas impulsionam alterações no sistema de fornecimento de água que tende a começar a ser captada cada vez mais longe do ponto de consumo, tornando a disponibilidade do elemento nas torneiras mais cara.
Chamas
A escalada de incêndios, majoritariamente causados por seres humanos, segundo estatísticas do Corpo de Bombeiros, piora o cenário para a sobrevivência da natureza no bioma. O fogo coexiste no Cerrado harmonicamente quando ocorre por condições do tempo favoráveis e é entendida como elementar para a renovação do bioma, mas quando utilizada com fins criminosos ou empresariais afeta toda a população.
No cultivo de cana-de-açúcar, por exemplo, as chamas são empregadas para queimar a folhagem, retirar a cera que cobre o vegetal e facilitar o corte pelos boias-frias. A prática recorrente por décadas em territórios extensos gera efeito danoso para o meio ambiente e para a saúde humana. Monoculturas como a de soja e o desmatamento para ocupação do terreno por gado e produção de carvão vegetal ajudam a piorar a situação.
“As consequências têm efeito direto na organização social e na realidade climática. O clima é um conjunto formado por ar, água e calor. Quando isso é alterado, o resultado sobre o bioma é a diminuição de água, evaporação, quantidade de chuvas e clima como tudo. Hoje, inclusive, já se fala sobre a extinção de espécies animais e vegetais, mesmo nem todas tendo sido catalogadas”, detalha Wildes.
Lado B
Os empresários e defensores do agronegócio se defendem com o argumento de que o mundo precisa se alimentar e que o progresso é inevitável. A relevância do segmento no Produto Interno Bruto (PIB), principalmente na balança comercial de exportações com saldo positivo, expõe a necessidade de aliar interesses econômicos e sustentabilidade, um dos desafios de diversos setores produtivos em todo o mundo.
O conhecimento técnico e a tecnologia são a estratégia para empregar e aproveitar racionalmente recursos e manejar espaços, reduzindo ou eliminando as chances de esgotamento das fontes naturais. Iniciativas de entidades público-privadas e educação ambiental nos colégios fazem parte da frente de luta contra o fim do Cerrado. Presente predominantemente em Goiás, mas também em outros onze estados, incluindo Paraná e Rondônia, ele se estende para além das fronteiras nacionais. Há registro na Bolívia, por exemplo.
Conter o aumento da velocidade de perda desse bioma no patamar de 4 mil quilômetros quadrados apenas entre janeiro e julho deste ano – superior ao registrado nos três anos anteriores, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), envolve uma força-tarefa. Na perspectiva do especialista, a perda diária de biodiversidade no Cerrado, que tem somente 20% da mata nativa intacta, envolve falar mais sobre o tema, preservar o bioma, melhorar técnicas de produção e valorizar a agricultura familiar.