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Cristina Lopes: uma história de superação e de luta contra a violência

Última atualização 09/03/2018 | 11:17

Em 1986, aos 20 anos, Cristina Lopes teve 85% do corpo queimado por seu, então, ex-namorado em uma tentativa de homicídio. Hoje, a vereadora Dra. Cristina, exerce seu segundo mandato em Goiânia tendo como bandeira a luta contra a violência. Além da atividade parlamentar, ela realiza palestras voluntárias em busca da conscientização da violência de gênero e do conhecimento acerca de queimaduras, como os cuidados ao sofrer esse tipo de lesão. Em entrevista ao Diário do Estado ontem, Dia da Mulher, a vereadora Dra. Cristina conta sua experiência pessoal de violência e alerta que esse dia é muito mais de conscientização e reflexão do que de comemoração.

Em 1857 centenas de mulheres morreram em uma fábrica têxtil ao reivindicar a humanização de seu trabalho, quase escravo, em Nova York. “Nós continuamos nessa luta, em busca do avanço. O dia 8 de março muito mais reflexão do que de comemoração, o que nós podemos fazer para mudar essa realidade tão dura?”, questiona Dra. Cristina.

A vereadora levanta a questão de que as mulheres precisam se unir e não julgar umas às outras. Principalmente quando trata-se de violência, pois um crime cometido contra uma, na verdade, é contra todas as mulheres. “Nós precisamos realmente compreender que hoje sou eu, amanhã é você. O crime que me acometeu não é contra a Cristina, é contra a mulher”, comenta.

Décima filha de 14, ela conta que vivia em um ambiente muito tranquilo em casa, com os irmãos. O que tornou ainda mais chocante a experiência de violência doméstica. “Eu nunca vivi violência dentro da minha casa, nem vi nos casamentos dos meus irmãos. Foi uma absoluto choque quando eu me vi nessa situação. Eu como protagonista de uma coisa que eu via na TV”, conta.

A identificação de que se está em um relacionamento abusivo pode ser complicada, pois nem sempre acontece de forma explícita, por meio de agressões ou xingamentos, mas sim de forma psicológica. “O meu agressor não cometia violência física nem sexual, ele nunca me bateu. A violência que ele cometia era psicológica. Ele fazia chantagem com ele mesmo, dizendo que iria se suicidar, que eu o tinha iludido, que nada era verdadeiro. Ele nunca falou que ia me agredir”, explica a vereadora.

Além disso, Dra. Cristina conta que a linguagem da violência psicológica é diferente e por isso ela por ser de difícil identificação, “ela é mascarada por um pseudo ciúme, é sutil. A única vez que ele falou “e se eu te matar” foi o dia que ele realmente tentou”. Porém, ela já percebe que hoje em dia, as mulheres estão prestando mais atenção à isso, tomando mais cuidado com essa possessividade que muitas vezes é confundida com amor.

Acidente e recuperação

Ocorrido em 6 de fevereiro de 1986, ela era recém formada em Educação Física na Universidade Federal no Paraná. Ao passar em uma prova para ir fazer um curso fora do Brasil, os conflitos como rapaz aumentaram. “Quando ele bebia, tudo mudava. Ele chorava, dizia que eu precisava ficar. Foi quando os conflitos começaram e ele foi planejando tudo o que faria.”

Cristina conta que o ato foi planejado e que seu ex-namorado deu indícios do que viria a fazer, porém, não foram percebidos a tempo. Ele contou histórias de outras mulheres ao qual ele já havia ameaçado e levou álcool para casa, produto que ninguém da família tinha costume de utilizar.

Dra. Cristina descreve o álcool, produto utilizado no ato, como cruel e brutal. “Minha experiência foi muito difícil. Ver a sua carne queimada, seu corpo destruído. É uma destruição física, psicológica, moral”. O autor do crime só teve sucesso na terceira tentativa de atear fogo em Cristina, quando o fogo se espalhou pelo álcool derramado no chão. “Eu comecei a gritar, foi quando meu irmão arrombou a porta e me abraçou com um edredom, que é o correto. Acordei no chuveiro, já sendo resfriada, para minha dor passar. Só que demorou muito a passar…”, relembra.

Durante sua recuperação, ela que teve o 85% do rosto queimado e passou por 24 cirurgias. Os médicos que a tratavam na época já tinham desacreditado do caso. “Os médicos já estavam dizendo que era questão de horas, que eu morreria, que já poderiam programar o enterro. Foi quando viemos do Paraná para Goiânia, meus irmãos e meu pai acreditaram na minha vida”, relata. Ela conta ainda, que sua família foi a base para sua recuperação: “meus irmãos se revezavam no hospital, dois deles me doaram pele, minha família me deu tudo.  Eu sou uma construção de resistência e de amor.”

Denúncia

A vergonha das mulheres em falar sobre suas histórias de vida, muitas vezes, deixam de ajudar outras mulheres. Dra. Cristina comenta que as últimas estatísticas são de 80% das mulheres terem sofrido algum tipo de agressão, porém, ela tem “certeza que é 100%. Algumas mulheres não falam por vergonha e quem tem que ter vergonha é o agressor, não a vítima”.

O ex-namorado dela foi condenado. Teve sua pena reduzida de 21 um anos, para 14 anos e 9 meses em regime fechado, por ser réu primário. Porém, antes de agredir Cristina, ele já havia tentado matar duas outras ex-namoradas e batido em uma terceira mulher. Dra. Cristina alerta para a importância de que as mulheres tenham coragem de denunciar seus agressores, pois isso pode salvar outras vidas. “Se as ex-namoradas dele tivessem tomado uma atitude, certamente, eu não teria sofrido essa agressão tão bárbara. Elas teriam feito um bem para todas as mulheres”.

Carreira

Formada primeiramente em Educação Física, Dra. Cristina teve sua carreira interrompida pelo acidente. Porém, depois de se recuperar, ela se graduou em fisioterapia com especialidade em dermato-funcional, área a qual dedicou mais de 25 anos de sua vida à ajudar pessoas que sofreram com queimaduras, assim como ela, além de ajudar na fundação de entidades como a Sociedade Brasileira de Queimaduras.

Como vereadora, ela conta que sua maior conquista política foi estabelecer dentro do HUGOL – Hospital Estadual de Urgências da Região Noroeste de Goiânia Governador Otávio Lage de Siqueira – uma unidade de queimados que “proporciona recursos materiais e humanos, assim como uma equipe altamente capacitada e uma unidade totalmente equipada”, para atender pessoas que sofreram como ela.

Hoje, ela enxerga a violência que viveu como uma oportunidade de falar sobre o assunto e ajudar mulheres do Brasil todo. “Sem dúvida, ter vivido uma violência doméstica me capacita emocionalmente e racionalmente pra lidar com isso. Eu tenho misericórdia do sofrimento porque eu sei exatamente o que aquela pessoa está vivendo. Você pede pra morrer, pra desmaiar, é desesperador. Mas eu tenho a racionalidade de saber que se eu não fizer aquele curativo, aquela pessoa vai morrer. Isso me traz uma estrutura pra eu trabalhar com o paciente”, relata sobre suas experiências no tratamento de pacientes de queimaduras.

Criou também o projeto Junho Laranja, que define, por lei, que o mês de junho seja dedicado à campanhas de prevenção e instalação de novos serviços. Assim como a propagação de informações como os primeiros socorros, fato primordial que possibilitou sua recuperação.

Ela completa sua fala sobre a carreira ao dizer que seu trabalho é de fiscalização das leis. “Temos muitas leis que não são cumpridas. O que nos falta é o exercício coerente, bom uso do dinheiro público, a prestação de serviço de qualidade e o respeito com a população”, completa.

Mulheres na política

Quanto à atuação de mulheres na política, Dra. Cristina diz que o que falta é iniciativa, pois já temos muitas mulheres à frente de várias organizações e fundações importantes no Brasil. Nós temos mulheres atuando em todos os setores da nossa sociedade, em ONG’s e fundações. “O que nos falta é interesse, decisão, querer fazer parte disso. A política está muito desacreditada. Quando eu decidi ser candidata é por que a gente ia até um ponto com as nossas pautas, e esbarrava num processo político, que dificultava. Pensei ‘porque não fazer a lei?’. A matemática é simples: se nós (mulheres) somos a maioria das eleitoras e a minoria eleita, tem algo errado”, explica.