O volume de lambanças feitas por deputados e senadores nas duas últimas semanas é de arrepiar. Autorizar a venda de armas de fogo a condenados, permitir que invasores de terra sejam expulsos à força sem autorização judicial, castrar quimicamente pedófilos, criminalizar o aborto, inclusive nos casos de estupro, incluindo de crianças. Aliado ao fato de que nada importa mais aos deputados e senadores do que o dinheiro das emendas parlamentares, a recente aprovação de tantos absurdos, seja na Comissão de Justiça da Câmara (de maioria bolsonarista) ou no plenário das casas legislativas, é prova cabal de que suas excelências decidiram virar as costas ao país.
Nenhuma das questões elencadas acima está no rol de urgências, nem mesmo consta entre as preocupações da população. Ao contrário. Ainda que haja empate quanto ao direito ao aborto na pesquisa DataFolha, 87% dos brasileiros apoiam que o procedimento seja feito em caso de estupro, como já prevê o entendimento legal do país desde 1940. Quanto às armas, a pesquisa aponta que apenas 33% das pessoas concordam com o direito de que elas estejam em mãos de civis. E 60% discordam que “facilitar a posse de armas vai aumentar a segurança no Brasil” (pesquisa DataSenado, fev/24).
Em nome de quem, portanto, agem os representantes do povo? Nem a necessária regulamentação da reforma tributária aprovada pelo Senado escapou desse brinde amargo ao público. Além do impacto na alíquota final, os vícios embutidos pelos senadores privilegiaram lobbies e consagraram despropósitos. Alguns kafkianos: armas de fogo e munições, plásticos descartáveis e bebidas açucaradas se livraram do imposto seletivo, conhecido como imposto do pecado, que prevê maior tributação a produtos nocivos ao ambiente, à saúde e à vida.
Na regulamentação foram incluídos novos itens de redução de alíquotas, como água mineral, mate e tapioca, estes dois últimos na tentativa de paridade com o café e farinha de trigo. Aumentaram-se ainda as regalias da Zona Franca de Manaus, cujo modelo de benefícios atuais já fere a competitividade da produção industrial do restante do país. Mesmo com passos tortos, a regulamentação da reforma tributária foi comemorada por substituir o atual sistema, completamente caótico e oneroso. Mas para-se por aqui. No geral, o volume de lambanças feitas pelos deputados e senadores nas duas últimas semanas é de arrepiar.
Caberá ao governo vetar pelo menos a completa desfiguração do Estatuto do Desarmamento feita pela Câmara e a loucura do Senado de incluir incentivos às poluentes térmicas de carvão no marco legal das eólicas em alto mar, que deveria ser incentivo à produção de energia limpa. Um escândalo. Enquanto isso, os projetos essenciais como o ajuste fiscal, a definição do novo salário mínimo e o orçamento para o próximo ano chegam à última semana legislativa sem serem votados. Aguardam o destravamento de pelo menos R$ 7 bilhões das emendas prometidas pelo governo.
O mais incrível é que os absurdos foram normalizados – poucas são as indignações. Suas excelências não só estão de costas para o país; estão se lixando para a população. Ao fazê-lo, enlameiam um dos três pilares do Estado, ampliando o descrédito na democracia representativa. Mary Zaidan é jornalista.