Com guerra à espreita, Alemanha quer conversar sobre armas nucleares
País ainda guarda ogivas americanas, mas procura novos parceiros após Donald
Trump pôr em xeque domo da Otan que protege a Europa
A DE deixou Emmanuel Macron
esperando por algum tempo. Em diversas ocasiões, o presidente francês quis
conversar sobre uma oferta de armas nucleares da França para a dissuasão nuclear
na Europa. Até recentemente, a ideia era rejeitada.
Mas isso está mudando. O líder conservador Friedrich Merz, que deve assumir o
comando do governo alemão nas próximas semanas, está pronto para o diálogo. A
situação mudou drasticamente diante das ameaças de Donald Trump
de negar a proteção militar dos Estados Unidos a seus aliados europeus da Otan.
EUA TÊM ARMAS NUCLEARES ESTACIONADAS NA DE
Há décadas, a DE
vive sob a proteção do escudo nuclear americano. Há um número de até 20 bombas
nucleares estacionadas em uma base aérea da Bundeswehr (as forças armadas
alemãs) em Büchel, no estado da Renânia-Palatinado. Só o presidente dos EUA têm
o código para liberá-las.
No entanto, em caso de emergência, caberia aos caças da Bundeswehr usá-las para
bombardear alvos. Essa coordenação conjunta da dissuasão nuclear com os
americanos é o que a Otan chama de “participação nuclear”, e também vale para
outros países europeus.
CLIMA NA DE ESTÁ MUDANDO
O Tratado Dois-Mais-Quatro, acordo de paz firmado em 1990, após a Reunificação
Alemã, proíbe a DE de ter armas nucleares próprias.
Segundo duas pesquisas de opinião conduzidas no início de março pelos institutos
Forsa e Civey, o percentual de alemães favoráveis ao armamento nuclear da
DE é de 31% e 38%, respectivamente. O apoio, apesar de ainda ser
minoritário, cresceu no último ano.
Mas é improvável que mudanças do tipo na opinião pública influenciem as
políticas de defesa. E, de qualquer forma, não se sabe se a DE, hoje, é
capaz de fabricar suas próprias armas nucleares.
Em um artigo publicado no início de março, o Wall Street Journal afirma que a
DE recebe pequenas quantidades de urânio enriquecido para um reator não
militar usado por pesquisadores da Universidade Técnica de Munique. Porém, o
jornal afirma que, ainda que o país possa vir a ter a base científica e
industrial necessária ao desenvolvimento de armas, ele ainda precisaria de ajuda
externa, que não poderia solicitar ou receber enquanto for membro do Tratado
sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares.
O futuro chanceler federal, Friedrich Merz, rejeita essas
especulações. A DE “não pode e não deve ter armas nucleares próprias”,
disse ele à agência de notícias em 9 de março. O país “renunciou expressamente à
posse de armas nucleares, e este seguirá sendo o caso”, acrescentou.
Merz quer discutir a dissuasão nuclear na Europa com a França e o Reino Unido,
duas potências nucleares. Em Paris, a porta já estava escancarada.
FRANÇA E REINO UNIDO, AS DUAS ÚNICAS POTÊNCIAS NUCLEARES DA EUROPA
A França e o Reino Unido
são os dois únicos países europeus que possuem armas nucleares – e só a França
faz parte da União Europeia. Uma cooperação mais estreita faria sentido,
portanto. Mas há alguns problemas.
As forças nucleares britânicas estão intimamente conectadas aos EUA e estariam à
disposição da Otan em caso de conflito. A situação é diferente na França, que
valoriza sobremaneira a independência de suas forças nucleares – elas não são
subordinadas às estruturas de comando conjunto da Otan.
Especialistas em segurança não esperam que os EUA retirem suas armas nucleares
da Europa num futuro próximo. “Não acho que isso é algo que seja um cenário
iminente, porque a Otan e o compartilhamento nuclear são de grande importância
estratégica para os EUA, por diversas razões”, afirma Sascha Hach, do Instituto
de Pesquisas da Paz em Frankfurt (PRIF). “Mas não dá para descartar [que isso
venha a acontecer]”, acrescenta.
Uma dessas vantagens estratégicas de que Hach fala é a possibilidade de reagir
em caso de uma agressão russa à Europa.
Mas mesmo que as ogivas americanas continuem na Europa, a semente da dúvida
plantada por Trump já está arranhando a credibilidade da dissuasão nuclear
americana. A DE, que sempre dependeu muito dos EUA, quer realinhar sua
política de segurança; a Bundeswehr será rearmada mais rapidamente.
Também há dúvidas sobre a eficácia de um escudo nuclear. Será que ele bastaria
para desencorajar um ataque da Rússia, que tem um enorme arsenal nuclear de mais de 5,5 mil ogivas?
COMO A FRANÇA PODERIA COOPERAR COM A DE
A França tem 290 ogivas nucleares que podem ser disparadas por submarinos ou
caças Rafale. O país afirma que suas forças nucleares, também conhecidas como
“Force de Frappe”, também fortalecem a segurança da Europa ao dissuadir
possíveis adversários.
Mas como exatamente seria essa cooperação? Informações sobre o manuseio e o
planejamento estratégico de armas nucleares são altamente sensíveis. A França
possui décadas de experiência nessa área, algo que a DE, por causa da
Segunda Guerra Mundial, naturalmente não tem.
Exercícios conjuntos entre as forças aéreas alemã e francesa são uma
possibilidade, segundo Camille Grand, do Conselho Europeu de Relações Exteriores
(ECFR). Isso poderia incluir a aterrissagem de jatos franceses Rafale na
DE. Grand, contudo, descarta que o estacionamento de caças nucleares
franceses ou de outra infraestrutura nuclear em território alemão, como
especulado em alguns meios de comunicação, esteja nos planos.
“É um erro supor que as garantias nucleares francesas seriam semelhantes às
garantias nucleares americanas”, ressalta ele.
O governo francês sempre deixou claro que não abrirá mão do controle sobre a
decisão de usar armas nucleares.
E AS ARMAS DO REINO UNIDO?
Assim como na França, as forças nucleares do Reino Unido são fortemente voltadas
para a defesa nacional. O país é o único a possuir apenas um tipo de armamento
nuclear. Seu sistema de dissuasão é inteiramente baseado no mar e consiste em
quatro submarinos nucleares estacionados na costa oeste da Escócia.
Hach considera que seria possível uma parceria estratégica mais forte ou uma
“declaração política de que os arsenais nucleares francês e britânico também
seriam usados para defender o território europeu em uma emergência”. “Mas acho
irrealista esperar que as forças nucleares da França e do Reino Unido se
desenvolvam de forma a se adaptar especificamente à defesa europeia”, afirma.
NÃO É SÓ UMA QUESTÃO DE BOMBAS
Na DE, Merz frisa que não se trata de substituir, mas sim complementar as
armas nucleares americanas. Que os EUA sejam considerados atualmente
insubstituíveis na Otan não tem só a ver com o tamanho de seu arsenal, mas também com habilidades
específicas que só os americanos têm, como contatos diretos com posições de
comando russas e sistemas de alerta contra mísseis balísticos. Tudo isso ajuda a
evitar escalações indesejadas num conflito.
“Quando nós na Europa agora discutimos o que fazer sem os EUA, sempre nos
concentramos na pergunta sobre se temos bombas suficientes”, critica Hach.
Enquanto isso, segundo ele, as pessoas esquecem que há outros mecanismos de
segurança importantes que a Europa poderia perder sem os EUA, como o contato
militar direto com adversários. “É do interesse da Europa construir estruturas e
mecanismos parecidos, sobre os quais nós tenhamos controle.”