Desafios de envelhecer LGBT+ no Brasil: solidão, acesso à saúde e abandono

desafios-de-envelhecer-lgbt2B-no-brasil3A-solidao2C-acesso-a-saude-e-abandono

Volta ao armário, solidão, abandono, acesso à saúde: os desafios de envelhecer
sendo LGBT+ no Brasil

Neste ano, o tema da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, que acontece no
próximo dia 22, levanta justamente o debate sobre o envelhecimento desta
população. O DE conversou com membros da comunidade sobre desafios e medos em
relação ao futuro.

Ser trans e envelhecer: realidade invisibilizada

A vida da população LGBTQIAPN+ é uma jornada de resistência e luta contra
violências e apagamentos que se acentua com o envelhecimento. Além de sofrer com
o etarismo, ao chegar à terceira idade, esses “sobreviventes” enfrentam outros
desafios: solidão, abandono, barreiras no acesso à saúde, falta de rede de apoio
e até mesmo a volta ao armário.

Neste ano, o tema da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo
, que acontece no próximo
dia 22, é justamente este: “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”.
Por isso o DE conversou com membros da comunidade sobre os desafios e os medos
no processo de envelhecimento.

Casadas há mais de 40 anos, Ana Beatriz Ruppelt, de 69 anos, e Maria Tereza
Cebalos Aguilar, de 66, são um exemplo de pessoas da comunidade LGBT+ que
tiveram a vida atravessada pelo isolamento social, pela dificuldade de
empregabilidade e, por consequência, por problemas financeiros. (Veja vídeo
acima.)

O casal mora com 18 cachorros, resgatados ao longo dos últimos anos, em uma casa
afastada do Centro de Itapevi, município da região metropolitana de São Paulo.

Ana Beatriz e Tereza são casahas há 40 anos e vivem em Itapevi.

Bacharel em direito e consultora jurídica, Ana Beatriz se reconhece como uma
mulher trans e lésbica, porém nem sempre foi assim. Ao DE, ela contou que desde
criança já se identificava com o universo feminino, porém foi criada por uma
família conservadora de origem alemã.

“Em 1970, era difícil poder pensar em identidade de gênero. Você era gay ou
hétero, você não podia ser outra coisa. Existiam as travestis, a gente tinha
amizade e sabia como era dura a vida delas. Demorou muito para eu vir me
assumir no meu corpo, eu só me assumi com uns 37 anos. Tive que me envolver
com drogas para poder superar, olhar para o meu corpo tomando banho e não ser
o corpo que eu desejava”, conta.

Quando Ana Beatriz e Tereza se conheceram numa tarde na piscina do Sesc na
década de 80, a consultora jurídica ainda não tinha transicionado. “Gostei dele
desde o começo, parecia um ganso branco que nem uma neve, o rosto muito lindo
[…] Me conquistou, muito inteligente, então foi isso que me fascinou nela”,
relembra Tereza.

Após descobrirem que eram vizinhas, elas passaram a sair e logo começaram a
namorar. Na sequência, vieram o casamento, que já dura 30 anos, três filhos e
quatro netos.

Somente aos 36 anos — depois de parar de usar drogas — Ana Beatriz reuniu forças
para sair do armário e contou à esposa que se identificava como mulher. Apesar
do desejo de modificar o corpo, uma infecção por hepatite C acabou atrapalhando
os planos dela.

Durante a transição e até os dias atuais, o isolamento social também se mostrou
um dos grandes desafios para a consultora jurídica. Muitos membros da família
ainda não respeitam seu nome social e seguem chamando-a pelo nome de registro.

“Um dos problemas maiores é o isolamento por parte dos filhos. Os meninos
parecem que têm uma certa transfobia em ver que o pai se transformou numa
pessoa diferente”, conta Ana Beatriz. Desde a transição, a relação com os
filhos se distanciou e, hoje, os encontros são raros.

“Você encontra essa dificuldade entre as pessoas que você tinha relacionamento,
elas se afastam totalmente. Em alguns casos, elas bloqueiam seu celular do nada
e, quando você encontra e questiona, a pessoa fala que trocou de celular”,
desabafa.

Segundo Ana Beatriz, outro grande obstáculo é o ingresso no mercado de trabalho.
Apesar da formação em direito e de já ter enviado centenas de currículos, ela
conta que nunca conseguiu uma chance em um escritório de advocacia.

Casal mora com 18 cachorros resgatados das ruas.

Durante alguns anos, o casal conquistou uma certa autonomia financeira quando
foram donas de uma banca de jornal em Santo Amaro, bairro da Zona Sul de São
Paulo. Contudo, um incêndio — que elas acreditam ter sido fruto de um crime de
ódio — acabou com o sonho delas, além de ter deixando um prejuízo de mais de R$
40 mil.

“O que mudou com a transição? uma liberdade, um eu diferente, um eu que eu
gostaria de ter tido essa oportunidade com 16 anos e ter vivido todos esses anos
esta vida. A única coisa que eu sinto é que talvez eu não tivesse as
oportunidades de emprego que eu tive. Eu trabalhei numa divisão de
microcomputadores da Sharp, fazendo pesquisa de mercado, batendo nas casas.
Talvez as pessoas não me receberiam [como mulher trans] para poder responder os
questionários.”

— Ana Beatriz Ruppelt

Aposentadas, hoje Ana Beatriz e Tereza tiram forças para lutar a partir do
companheirismo e do carinho dos 18 cachorros que trazem “paz de espírito e
segurança”, segundo a definição delas mesmas. Para o futuro, elas sonham em
viajar mais e “morrer juntinhas”.

Decidi que não vou mais ficar no armário

A fatia da comunidade LGBT+ que hoje compõe a terceira idade vem de uma geração
que enfrentou uma realidade mais conservadora e violenta com a ditadura militar,
a repressão policial, a explosão da Aids, a classificação da homossexualidade
como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Portanto, sair do armário era mais desafiador, como foi o caso da professora
aposentada Dora Cudignola, de 72 anos. Atualmente, ela é presidente da ONG
Eternamente Sou com sede na capital paulista, que se dedica ao acolhimento e
bem-estar da população LGBT+ idosa.

A jornada de descoberta da sexualidade de Dora foi gradual. Ela foi casada com
um homem por dez anos e teve uma filha. Durante essa fase, a professora relata
que, embora o marido fosse carinhoso e um bom pai, ela nunca sentiu prazer
sexual.

Após a separação, Dora teve seu primeiro relacionamento com uma mulher. Apesar
de ter sofrido violência doméstica ao longo do namoro, ela reconhece que essa
parceira a ajudou a “sair do armário”.

Sua grande história de amor começou somente em 2001, quando conheceu a
professora de história Silvia no bate-papo do UOL.

“Era uma sexta-feira, que eu nunca esqueço, dia 7 de abril de 2001. Ela entra
com o nickname ‘Raio de sol’ , e eu era a ‘Deusa’. Nós ficamos até 2 horas da
manhã conversando e depois trocamos número do telefone fixo, antigamente não
tinha celular”, relembra.

O amor entre elas foi instantâneo, porém estavam separadas por mais de 400 km de
distância. Silvia morava no município de Guaíra, no interior de São Paulo. Logo
no início do relacionamento, ela decidiu se mudar para a capital, onde compraram
um apartamento e construíram uma vida juntas durante 13 anos.

O casal trabalhava na mesma escola: Dora era diretora da instituição, enquanto
Silvia era a coordenadora. Apesar do relacionamento, elas fingiam ser apenas
colegas de trabalho.

Em 2014, o mundo de Dora parou quando a esposa morreu repentinamente devido a um
AVC hemorrágico. O velório atraiu uma multidão de alunos, já que Silvia era
muito querida na escola. Na despedida final no Cemitério Vila Formosa, Dora
finalmente beijou a esposa em público.

“Me recordo que falei ‘eu amo você para a vida toda’ e a beijei na boca ali.
Então ali eu me abri, não tive medo, não tive vergonha, não tive nada. Foi
quando eu falei para mim mesma: ‘Como eu me arrependo de não ter feito isso
junto com ela, nós juntas’. Depois desse dia, eu decidi que não vou mais ficar
no armário. Eu vou ser eu, a Dora. Naquele tempo, eu já estava com 60 anos.”

Após oito dias do velório e afastada do trabalho, Dora voltou para a escola e
teve a grata surpresa de ter sido acolhida pelos professores e alunos que tinham
recém descoberto seu relacionamento e sua orientação sexual.

“Eles que me acolheram, me abraçaram, disseram que me amavam e nunca tocaram no
assunto. Não teve risinho, me respeitaram da maneira que me respeitavam antes,
porque eu sempre eu fui uma pessoa de conversar, de tentar entender os alunos”,
conta a professora.

A partida de Silvia deixou um vazio em Dora que foi em parte preenchido pela
“Eternamente Sou” a partir de 2018. Para ela, o trabalho na ONG foi crucial no
processo de luto e a ajudou a não se sentir sozinha.

A organização oferece espaço de acolhimento e escuta com oficinas e atividades
culturais, onde os idosos LGBT+ se sentem à vontade para compartilhar suas
histórias, formando uma verdadeira família.

5 de 5 Apesar da expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil ser de 35
anos, Ana Beatriz vai completar 70 anos em 8 de dezembro, no Dia da Justiça. —
Foto: Fábio Tito/g1

Apesar da expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil ser de 35 anos, Ana
Beatriz vai completar 70 anos em 8 de dezembro, no Dia da Justiça. — Foto: Fábio
Tito/g1

Ela também critica a falta de iniciativa da própria militância, que tem sua
parcela de responsabilidade no processo de apagamento dos idosos. “A própria
comunidade não tem espaço de socialização dos idosos LGBTs. […] A própria
comunidade também não vê, não aceita, trata com desdém [os idosos].”

Para o médico geriatra Milton Crenitte, coordenador do ambulatório de
sexualidade da geriatria do Hospital das Clínicas da USP, há três grandes
barreiras no acesso ao sistema de saúde para a terceira idade LGBT+:

A maior parte dos serviços de saúde está organizada sobre uma lógica
heterocisnormativa, onde o nome social não é respeitado;
Muitos profissionais de saúde não estão preparados para lidar com as
particularidades de saúde da população LGBT+, e o despreparo se estende a
outras áreas, como segurança, limpeza e recepção;
Em razão de experiências negativas, a população LGBT+ costuma acessar os
equipamentos de saúde pela porta de emergência.

Um exemplo comum, segundo Crenitte, é a chamada “síndrome do cotovelo”: quando
uma pessoa LGBT+ está numa sala de espera e outros pacientes começam a se
acotovelar e a trocar olhares — uma exemplo de homofobia velada.

Muitas pessoas dessa geração, que hoje tem 60, 70, 80 anos, romperam com as suas
famílias biológicas para serem quem são… A solidão pode matar. O malefício de
a solidão é comparado mais ou menos ao malefício de a pessoa fumar mais de
quatro, cinco cigarros por dia.

— médico geriatra Milton Crenitte

O médico também ressalta que cada grupo dentro da sigla enfrenta desafios
específicos durante o envelhecimento, que vão desde a saúde física até o suporte
emocional e social.

No caso dos homens gays, o envelhecimento do corpo pode gerar sofrimento mental.
Muitos deles lidam com a pressão estética de manter um corpo considerado ideal —
musculoso, jovem e dentro de padrões exigentes — o que se torna cada vez mais
difícil com o passar dos anos.

Entre as mulheres lésbicas, uma das maiores barreiras está no acesso à saúde
preventiva. Segundo dados reunidos por Crenitte, enquanto 80% das mulheres
heterossexuais já tinham feito mamografia ao menos uma vez, entre as lésbicas
esse número cai para 40%.

O despreparo dos profissionais de saúde para lidar com a sexualidade de mulheres
que se relacionam com outras mulheres agrava o problema. Questões como sexo
entre duas pessoas com vulva ainda são pouco discutidas ou compreendidas nas
consultas médicas.

As pessoas trans e travestis enfrentam os maiores níveis de vulnerabilidade.
Para envelhecer com dignidade, elas precisam de políticas que garantam acesso a
saúde, moradia, emprego e renda. No entanto, muitos desses direitos básicos
ainda são negados ou negligenciados. As taxas de depressão, ansiedade e suicídio
continuam altas nesse grupo, especialmente entre os idosos.

Outro ponto levantado por Crenitte é a entrada tardia de pessoas LGBT+ nos
serviços de saúde. Muitas só procuram atendimento em situações de urgência, como
infecções graves ou crises agudas, por medo de sofrer violência ou
constrangimento. Há inúmeros relatos de experiências vexatórias em unidades de
saúde.

Para enfrentar esse cenário, Crenitte defende que políticas públicas já
existentes, como a Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT (criada
em 2011), sejam efetivamente implementadas. Ele também ressalta a importância de
incluir temas ligados à diversidade nos currículos das faculdades de medicina e
demais cursos da área da saúde.

🔔Receba as notícias do Diário do Estado no Telegram do Diário do Estado e no canal do Diário do Estado no WhatsApp