Lô Borges e o “Disco do Tênis”: A ousadia que quase encerrou sua carreira

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O álbum experimental de Lô Borges que quase o fez desistir da carreira: ‘Quando
acabei, eu falei: Não quero ver gravadora, quero ir pra Bahia de carona’

O cantor e compositor Lô Borges morreu na noite de domingo (2/11), em Belo
Horizonte, aos 73 anos.

Lô Borges, um dos fundadores do Clube da Esquina, morre aos 73 anos
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Lô Borges, um dos fundadores do Clube da Esquina, morre aos 73 anos

O cantor e compositor Lô Borges morreu na noite de domingo (2), em Belo
Horizonte, aos 73 anos
[https://de.de.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2025/11/03/lo-borges-um-dos-fundadores-do-clube-da-esquina-morre-aos-73-anos-em-belo-horizonte.ghtml].
O artista estava internado desde meados de outubro, devido a uma intoxicação por
medicamentos.

Salomão Borges Filho, conhecido pelo nome artístico de Lô Borges
[https://de.de.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2025/11/03/lo-borges-morto-aos-73-foi-icone-do-clube-da-esquina-e-renovou-musica-brasileira.ghtml],
fez parte da geração de compositores mineiros que entrou para a história da
música popular brasileira ao gravar, coletivamente, discos antológicos, que
continuam influenciando novas gerações de artistas.

Conhecido por ser um dos fundadores do Clube da Esquina ao lado de Milton
Nascimento, a carreira do artista é também marcada por composições como “Um
Girassol da Cor do Seu Cabelo”, “O Trem Azul” e “Paisagem da Janela”.

Um dos caçulas de sua turma, dez anos mais novo que Milton Nascimento, Lô
quase ficou de fora das gravações de “Clube da Esquina”, o álbum duplo e
colaborativo, gravado em 1971 —e que até hoje encabeça listas de melhores
discos já lançados no país.

Os executivos da gravadora EMI achavam que o menino de 19 anos, sem nada
gravado, era jovem demais para se misturar no estúdio a músicos devidamente
testados e com uma carreira em andamento, como era o caso de Milton, o já famoso
autor de “Travessia”, e dos experientes Wagner Tiso e Toninho Horta.

Milton bateu o pé. Se a EMI continuasse implicando com o garoto, eles estavam
fora. “Eu devo muita coisa pra esse cara, bicho! Eles não querendo perder o
Milton, me levaram de brinde”, brincou o compositor, em participação no programa
Um Café Lá em Casa, do guitarrista Nelson Faria.

Lô ficou e provou que Bituca estava certo. Sua participação em “Clube da
Esquina” foi muito além do imaginado até pelo novato, autor, entre outras
canções, de grandes sucessos do álbum, como “Paisagem da Janela” e “O Trem
Azul”.

Antes reticente, a direção da EMI, surpreendida pela atuação de Lô, convidou o
estreante para gravar um disco solo, desde que, claro, ele tivesse um repertório
pronto. O disco seria lançado em poucos meses.

Lô mentiu para assinar o contrato. Não tinha nenhuma música pronta,
absolutamente nada. Havia gasto toda a munição no disco coletivo. “Eu pensei:
‘Não tenho nenhuma canção, mas eu vou criar, vou arregaçar as mangas, vou
pegar o violão, vou dormir com ele, vou ficar abraçado com o violão 24 horas
por dias e vou fazer o disco. E foi o que aconteceu'”, lembrou o compositor,
em entrevista ao “Correio Braziliense”, em 2017.

A ousadia de Lô rendeu outro registro histórico, o “Disco do Tênis” (1972),
chamado assim por conta da foto de capa de um tênis todo surrado, repassado ao
compositor por um primo. A imagem tem um alto valor simbólico: Lô teve que
gastar muita sola de sapato para deixar o disco pronto em tempo recorde.

A reportagem da BBC News Brasil foi atrás de histórias curiosas envolvendo esse
disco, cultuado internacionalmente e que, apesar de levar o nome do compositor,
é resultado de outro esforço coletivo.

Lô armou um plano para colocar o disco em pé. Combinou com o irmão, o também
compositor Márcio Borges, que o processo criativo duraria 24 horas. De dia, ele
trabalharia. À noite, o irmão. E assim, durante uma semana, os dois compuseram
compulsivamente, esboços de canções que seriam lapidadas com a ajuda dos amigos,
os mesmos do Clube da Esquina.

“Era uma oficina intensa de criação, uma coisa incrível. Rolou uma química entre
todo mundo que em nenhum outro álbum que eu tenha gravado na minha vida
aconteceu de novo. A gente não tinha tempo para fazer ensaios, pensar arranjos,
então era tudo feito na hora pela intuição, pela musicalidade. Todas as pessoas
emprestaram seu talento para as músicas que eu estava apresentando”, recordou
Lô, na entrevista ao “Correio Braziliense”.

No meio do processo, Lô pensou em desistir diversas vezes. O tempo era curto.
Logo após a assinatura do contrato, a gravadora havia pedido que o compositor
passasse uma lista de canções inéditas, para começar a pensar no repertório, nos
arranjos, na cara do disco. Não havia rosto porque não havia música.

Lô, fã dos Beatles, como todos os músicos de sua geração, lembrou que ele não
era o único artista a sofrer com prazos e cobranças. “Eu sempre fui um
beatlemaníaco e eu me lembrava que, nos primeiros álbuns dos Beatles, eles
faziam duas, três músicas por dia, às vezes gravavam um álbum inteiro em uma
semana. Eu ainda tinha um tempo a mais do que isso, uns dois meses para compor e
gravar tudo. Eu pensava nessas coisas para me ajudar”, afirmou o compositor, ao
“Correio Braziliense”.

Assim como os quatro músicos de Liverpool, Lô recorreu a “aditivos” para
produzir compulsivamente e buscar inspiração. Eram tempos das drogas
lisérgicas. Embora traga toques de psicodelia, o “Disco do Tênis” é um
apanhado de tudo que Lô e sua turma ouviam na época, de Jimi Hendrix, Emerson,
Lake & Palmer a Chico Buarque, Caetano Veloso e Hermeto Pascoal.

Os amigos dividiram os ácidos e as tarefas. Milton assumiu a assistência de
produção, junto com Márcio Borges, parceiro de Lô em “O Caçador”, “Para Onde Vai
Você”, “Faça Seu Jogo” e “Não se Apague Esta Noite”.

Duas das mais fortes canções do disco, que abrem o álbum, “Você Fica Melhor
Assim” e “Canção Postal “são parcerias de Lô, respectivamente, com Tavinho Moura
e Ronaldo Bastos.

O mutirão envolveu até músicos que não eram propriamente da turma, como Danilo
Caymmi, que toca flauta em “Não foi Nada” e “Calibre”. Outro filho de Dorival,
Dori Caymmi, havia assumido os arranjos e a regência do disco.

Apesar dos esforços, deu tudo errado. O disco não saiu do jeito que Lô queria
e também não atendeu às expectativas da gravadora, que achou o disco pouco
comercial.

“Eu fiz as canções no sufoco, tanto que rejeitei esse álbum durante algumas
décadas. Eu achava ele muito caótico, experimentalista, ansioso. Ele me lembrava
os tempos da ditadura, quando eu me sentia oprimido”, lembrou Lô, em entrevista
ao site Tenho Mais Discos Que Amigos, em 2021.

Sem investimento, o álbum não aconteceu. E acabou servindo de aprendizado para o
autor, que nunca mais aceitou fazer nada sob pressão. O tênis na capa ganhou
mais um simbolismo.

“Não queria que a minha carreira fosse regida pelos caras da gravadora. É isso
que o tênis quer dizer na capa. Simbolizava que eu estava largando a música
naquele momento. Eu não queria sobreviver de música, eu queria que a música
sobrevivesse em mim”, afirmou Lô, em entrevista ao “Correio Braziliense”.

Era hora de cair na estrada, sem obrigações. Viver como um cara de 19 anos. “Eu
saí da gravação do disco anoréxico, drogado. Quando acabei, eu falei: ‘Não quero
ver gravadora, não quero saber de showbiz. Quero viver a vida do pessoal da
minha idade, ir pra Bahia de carona'”, disse o músico, em entrevista ao “Jornal
do Comércio”, em 2017.

FÃS INTERNACIONAIS

Rejeitado pelo próprio, o “Disco do Tênis” não foi abandonado pelos fãs. Com o
tempo, o culto ao álbum cresceu e rompeu fronteiras. Em 2018, a banda britânica
Arctic Monkeys citou o álbum como uma de suas grandes influências musicais.

O vocalista e líder do grupo, Alex Turner, é tão enlouquecido por “Aos Barões”,
que confessou ter feito quase todas as canções do novo disco, “Tranquility base
hotel & cassino”, com a música de Lô na cabeça.

O próprio Lô, com o tempo, diante de tanta idolatria, passou a ver com outros
olhos o disco até então renegado.

Ele havia autorizado os diretores Vânia Catani e Rodrigo de Oliveira a rodar um
filme sobre o processo de criação do “Disco do Tênis”, que deve sair em breve.

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