“Usei para não perder o contrato”: como as canetas emagrecedoras chegaram ao futebol brasileiro
Medicamento ainda não é considerado doping por agências reguladoras, ganha espaço entre atletas que precisam entrar em forma rapidamente e chama atenção de autoridades do esporte
Joãozinho ficou surpreso ao ser chamado por um clube do Nordeste para um contrato de três meses a poucas semanas do início da segunda divisão estadual. Afinal, havia cinco meses que o volante estava desempregado. E, consequentemente, fora de forma.
Ele, então, apelou aos remédios para chegar ao peso ideal e conseguir jogar profissionalmente.
Os sete quilos perdidos em duas semanas (de 91kg para 84kg) foram resultado de duas aplicações de semaglutida, medicamento das famosas “canetas emagrecedoras”. Joãozinho (nome fictício dado pelo ge ao jogador que pediu anonimato) só não imaginava que isso impactaria no seu rendimento.
Mas ele percebeu que o emagrecimento ficou em segundo plano, porque a apatia e a falta de explosão muscular no dia a dia chamaram mais atenção do que o “shape” conquistado.
– Não conseguia treinar com a mesma intensidade de antes. Senti muita fraqueza, enjoo e uma falta de ar em alguns momentos. Isso me atrapalhou muito. Mesmo perdendo peso, sentia que não evoluía, sempre corria menos e tinha a sensação de estar travado. Só depois que parei de tomar a injeção que comecei a melhorar. Mas daí já tinha perdido a vaga no time e fomos eliminados.
A reportagem do ge conversou com várias fontes em departamentos médicos de diversos clubes das Séries A, B e C do Campeonato Brasileiro sobre o uso de canetas emagrecedoras na rotina de atletas em temporada ou em períodos de férias, por exemplo. O assunto é sensível e virou tema quase proibido e rechaçado pela maioria deles.
– A caneta tem ajudado jogadores que precisam ficar em forma em um curto espaço de tempo ou até manter a forma física durante um período lesionado. Isso é mais comum com atletas que não possuem contratos longos, que jogam campeonatos ao redor do Brasil e nem sempre se cuidam e conseguem se manter em forma ou ficar rapidamente aptos fisicamente para jogar – disse o preparador físico de um clube da Série B, que também preferiu manter o nome em sigilo.
– Não existe qualquer uso de semaglutida ou outra substância emagrecedora em cronograma de um atleta profissional de futebol de um grande clube no Brasil. É impensável em 2025 um jogador não conseguir ficar em forma seguindo uma boa alimentação e rotina de treinos. Acho um absurdo, caso aconteça. Eu mesmo não tenho conhecimento algum sobre o assunto – disse o membro do DM de um clube que disputa a Série A do Campeonato Brasileiro.
O caso de Joãozinho, citado no começo da reportagem, ilustra bem o cenário do futebol longe da estrutura oferecida por grandes clubes no Brasil.
A opção por usar a caneta emagrecedora foi feita pelo atleta sem consultar o clube que viria a contratá-lo e como medida emergencial pelo receio de perder um contrato considerado bom justamente por não estar bem fisicamente.
Antes de se empregar novamente no futebol, o jogador precisou trabalhar com a esposa na produção de doces caseiros e não conseguiu manter uma rotina de treinamentos e com boa alimentação.
– O mundo real do futebol longe dos grandes centros é esse. Eu ganhei peso por trabalhar ajudando minha esposa com entregas de doces caseiros no período em que fiquei parado. Não tinha tempo de treinar, muito menos de cuidar da minha alimentação. Mesmo em um clube menor, a preocupação com dieta no dia a dia não é tão grande, mas você treina todo dia e não ganha peso. Quando para de treinar, engorda mesmo. Usei para não perder o contrato – disse Joãozinho, atualmente com 31 anos.
O resultado em campo não foi o esperado: apenas seis jogos, sendo cinco deles começando como opção no banco de reservas. Ele está novamente sem clube.
É importante ressaltar os motivos mencionados pelos dois jogadores entrevistados na reportagem para não terem suas identidades reveladas. Ambos temem serem mal vistos no meio pelo uso do medicamento, mesmo no caso do atleta em que a recomendação foi do clube.
Por ainda estarem em atividade e com idade acima dos 30 anos, consideraram que teriam mais pontos negativos do que positivos se fossem identificados.
– Complicado falar sobre isso. O que eu ganharia falando que uso a caneta? O jogador de futebol hoje em dia leva pedrada por qualquer coisa. Não estou fazendo nada de errado, mas se disser abertamente vão me julgar e olhar de maneira diferente: “ah, o cara é vagabundo, preguiçoso, não gosta de treinar” – disse um jogador.
O assunto é tão delicado no meio do futebol que até outros entrevistados pela reportagem, como um preparador físico e um médico que trabalham em clubes das Séries A e B do Brasileiro, optaram por não se identificar.
O ge ouviu relatos de que há também jogadores da Série A fazendo uso das canetas. Mas, assim como nas divisões inferiores, o assunto ainda é um tabu. Nenhum clube procurado pela reportagem concordou em falar sobre o assunto.
Um jogador que faz parte do elenco de um clube que disputa a Série A faz uso contínuo da medicação para o controle de peso. Com dificuldade para se manter dentro das metas estabelecidas pelo departamento médico do clube, o atleta em questão foi orientado a usar a medicação, com o apoio de suplementação para manter os níveis de proteínas, para conseguir seguir em forma.
Vários medicamentos considerados emagrecedores, como diuréticos e estimulantes, são proibidos e considerados doping pela agência reguladora. No caso das canetas emagrecedoras, o futebol não é o principal alvo, mas, sim, esportes de alto rendimento como corrida, triatlo, entre outros.
– Temos tirado bastante dúvida da comunidade esportiva a respeito da utilização dessas substâncias dentro do esporte. Não só no futebol, também nele, mas em especial em esportes e modalidades com categoria de peso, onde isso tende a ser algo mais relevante para o desempenho do atleta.
Por enquanto, até o complemento dos estudos de monitoramento da WADA, qualquer caneta emagrecedora ainda não tem o seu uso por atletas considerado doping.
Em contato com o ge, a WADA (Agência Mundial Antidoping) afirmou que o grupo consultivo de especialistas da agência discute o status dessas substâncias, bem como de outras da mesma classe. E que a semaglutida foi adicionada ao Programa de Monitoramento para acompanhar os padrões de uso no esporte, tanto dentro quanto fora de competição.
Presidente da ABCD comenta possibilidade de proibição de canetas emagrecedoras no esporte
O Programa de Monitoramento inclui substâncias que não estão na Lista de Proibidas, mas que a WADA deseja observar para detectar possíveis padrões de uso indevido no esporte. De acordo com a agência, são esses os critérios para a avaliação e possível proibição das substâncias:
Ter potencial para aumentar o desempenho esportivo;
Representar um risco à saúde do atleta;
Violar o espírito do esporte (conforme definido pelo Código).
Caso isso seja observado, a tendência é de uma proibição da substância. Veja o que diz Adriana Taboza de Oliveira, presidente da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD):
– A gente percebe que muitas substâncias que têm um propósito terapêutico específico, muitas vezes passam a ser utilizadas pela comunidade com outros fins, e não é diferente em relação a essas canetas emagrecedoras. Elas têm um fim próprio terapêutico para tratamento de uma doença específica, mas detectou-se que elas têm algum benefício para a perda de peso.
– E é natural que esse comportamento se dissemine muito rápido, porque significa um atalho para um fim que é muito desejado, não só no ambiente esportivo, mas socialmente falando.
– Dentro do esporte, a comunidade, os cientistas e especialmente aqueles vinculados ao sistema mundial de dopagem, passam a observar a utilização dessas substâncias quando elas adentram dentro do ambiente esportivo para ter certeza de que não está prejudicando especialmente a saúde do atleta e não está trazendo um desempenho artificial em relação ao esporte.
– Então, o que acontece? Mesmo ela tendo um fim terapêutico próprio, passa-se a observar se aquela utilização tomou uma proporção perigosa dentro do ambiente esportivo. E a gente sabe que, como qualquer outra substância, essas canetas têm efeitos adversos importantes que precisam ser observados.
– Se dentro do ambiente esportivo isso passa a ser numeroso, importante, em esportes específicos, essa substância passa a compor a lista de monitoramento, que é uma lista que antecede à de substâncias proibidas, porque ela passa a ser acompanhada de perto para que a agência mundial determine se ela sobe ou não para um nível de proibição dentro do esporte.
Nenhuma das substâncias citadas acima como base para as “canetas emagrecedoras” estão proibidas ou são consideradas doping no esporte.
O médico alerta para o uso do medicamento para outra finalidade: a de diminuir a ansiedade e os vícios ocasionados pela pressão por resultados e a rotina do futebol, como o tabagismo e o alcoolismo.
– A gente sabe que tem muito jogador que bebe e fuma. Então, quando pega essa caneta, ela vai modificar o sistema de gordura do paciente, além de ajudar a não ter vícios, a emagrecer, ficar com uma dieta mais restrita. Ele também vai melhorar o condicionamento, o metabolismo das gorduras.
– E o que isso vai impactar diretamente na performance do jogador? Quando a gente melhora o nosso metabolismo de gordura, a gente poupa mais o glicogênio, e é o glicogênio que faz com que a gente tenha performance em esportes de alto rendimento, principalmente nos de alta intensidade.
– Então, para um jogador que tem problema com controle de peso, que está em pré-temporada, que acabou de voltar de férias, que se lesionou ou que tem algum problema com peso, ele pode usar um tipo de medicamento desse, com acompanhamento médico, é óbvio, para que ele consiga ficar com uma dieta mais natural, com poucos produtos, uma alimentação não tão inflamatória. Quando a gente gasta mais gordura no repouso, sobra glicogênio para performar – explicou Mantovani.
Por isso, o médico acredita que as substâncias das canetas emagrecedoras devem ser proibidas a curto prazo pelas agências reguladoras e consideras doping.
– Não tenho dúvidas que daqui a pouco a WADA ou as organizações vão bloquear esse tipo de medicamento, que diferentemente da anfetamina, ainda ninguém ficou muito preocupado com a melhora de resultado. Outras medicações que vão chegar no mercado vão ser mais impactantes ainda nessa questão metabólica – completa o médico.
O ge procurou a entidade máxima do futebol, que não comentou os questionamentos envolvendo a utilização das canetas emagrecedoras por jogadores. Em caso de resposta, a reportagem será atualizada.
Até o momento, o uso de canetas emagrecedoras em atletas ainda não é considerado proibido por agências reguladoras, mas há acompanhamento e monitoramento em relação a essas substâncias, que podem trazer riscos à saúde e impactar diretamente no desempenho esportivo. A discussão sobre a possível inclusão dessas substâncias na lista de proibidas continua em andamento, enquanto atletas e profissionais do esporte buscam alternativas para lidar com questões de peso e forma física de maneira saudável e eficaz. Cabe aos órgãos competentes e às entidades esportivas estabelecer diretrizes claras e seguras para a utilização de medicamentos emagrecedores no esporte, visando sempre a preservação da integridade e da saúde dos atletas.




