A Igreja e seus desafios

Como organismo vivo, divino e humano, o Corpo Místico de Cristo chamado Igreja é uma ponte entre a eternidade e a atualidade. Deve ser fiel à sua origem sem se desconectar com o tempo presente e preservar o que é enquanto está na história. Deste “ser” e “estar” emergem dois desafios intimamente conectados: da identidade e do diálogo. Ela tem uma identidade clara: é a Arca da Aliança ou Depósito da Fé. Entende-se que seus preceitos básicos não foram construídos por homens, mas concedidos por Deus. Embora sob constante pressão, à Igreja compete entender o que é essa verdade revelada e zelar por sua integridade.

Na prática, nem os Bispos ou o Papa possuem autonomia para certas mudanças. Na encantadora linguagem bíblica, eles não passam do “amigo do noivo”, responsáveis por levar a Igreja-noiva incólume até seu verdadeiro esposo, o Cristo. Pode o amigo do noivo usufruir, manchar, adulterar ou submeter a si mesmo a noiva? Não pode! É seu dever preservá-la e adorná-la com os ornamentos preparados pelo seu esposo.

No entanto, faz parte desta nossa “atualidade” um questionar-se sobre a própria identidade como se fosse mais relacionada ao “estar” do que ao “ser”. Esse ambiente volátil gera o grande desafio do diálogo interno e externo.

Rumo ao diálogo externo através do Ecumenismo e do Diálogo Inter-Religioso, passos importantes foram dados no século XX: entendeu-se que dialogar não é perder sua própria identidade, não significa abrir concessões e alterar sua própria fé, deformando-se ou sendo deformado. Nem excluir o diferente. São Paulo lembra que devemos suportar-nos uns aos outros (Ef 4,2 – Cl 3,13), mesmo que pensemos ou vivamos sob outros princípios.

Como membros de uma única família humana, nem sempre nos será agradável o próprio irmão, o cunhado ou a sogra… Entretanto, respeito é fundamental, inegociável e precisa ser recíproco. Não se trata de promover guerras “santas” para obrigar a adesão à uma fé que não pertence ao outro, mas, sim, de procurar fraternidade e cooperação para se construir uma sociedade mais igualitária e mais humana.

Entende-se que, do ponto de vista católico, a busca por uma sociedade ideal não é sua principal meta. A Igreja existe para além disso. Mas, não se adorna como esposa se não imitar a Cristo também no seu cuidado e atenção para com todos, humildes ou privilegiados.

O diálogo interno, por outro lado, sofre duros golpes. Crescem os grupos que procuram ser os verdadeiros depositários da fé, autênticos intérpretes de Deus e juízes dos acontecimentos. Questionam a hierarquia, sugerindo que em alguns momentos pode estar de acordo com a revelação e em outros, não. Contrapõem documentos atuais a outros documentos de outras épocas e circunstâncias.

Nessa pressão de fragmentação, cumpre aos leigos e religiosos refazerem humildemente o caminho do diálogo. Poderíamos começar com algumas perguntas bem pessoais: Tenho autoridade real para direcionar, questionar e propor mudanças? Quais frutos meu “apostolado” tem gerado? Santidade e conversão ou ódio e provocações? Uso a autoridade que me foi concedida para levar as pessoas a Deus ou para promover somente ideias sociais, políticas e econômicas? Tenho sido um “outro Cristo”?

Se lembrarmos que não seremos “julgados pela história”, mas por Aquele mesmo do qual nos arrogamos ser fidelíssimos mensageiros, talvez isso seja motivo suficiente para que tenhamos um pouco mais de cuidado com as palavras que usamos e que deveriam não nos pertencer.

*Flávio Crepaldi é colaborador da Fundação João Paulo II e colunista do Canal Formação, no Portal: cancaonova.com

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A crise moral da nova geração de médicos

Médico com máscara.

Por: SARA ANDRADE

Uma jornalista jovem de classe média tem livre circulação nos ambientes frequentados por pessoas com histórias relativamente parecidas: vivendo dentro dos seus vinte anos, formando-se na faculdade e começando carreiras no mercado de trabalho. Nesta bolha, destaca-se a quantidade de moças e rapazes que optaram pelo estudo da medicina.

Estão aí para provar as estatísticas: de 2000 para 2020, o número destes profissionais no Brasil mais que dobrou, passando de 230 mil para meio milhão, segundo resultados do estudo “Demografia Médica no Brasil 2020”, liberado pelo Conselho Nacional de Medicina em parceria com a Universidade de São Paulo.

As milhares de entregas de canudo, tão comemoradas, foram responsáveis por alargar a média de médicos a cada mil habitantes no país: de 1,4 para 2,4, colocando o Brasil no mesmo patamar de nações como Japão ou Polônia, e apenas décimos atrás dos Estados Unidos, com média de 2,6. O que os números não podem mostrar, no entanto, são os pormenores deste fenômeno. Aqui vale o ponto de vista de uma jovem jornalista, e o cenário não é tão simples quanto parece.

A medicina sempre carregou consigo seu bocado de nobreza. Curar doenças, tirar a dor das pessoas, aumentar o tempo e a qualidade de vida: de fato, o jaleco branco pode ser uma espécie metafórica de batina, numa profissão quase sacerdotal, sagrada. Não seria falta de noção falar até em “amor ao próximo”. Muitos jovens estudantes parecem ter esta ideia romântica em mente: ajudar as pessoas através do trabalho de suas vidas. Não é só um emprego: torna-se missão e vocação.

Enquanto isso, outros estudantes de medicina parecem perdidos pelo caminho. Atenção: este é um questionamento aos que em breve serão médicos! Você está verdadeiramente preparado para abrir mão de si, dos seus desejos e caprichos, em prol de um desconhecido? Muitas vezes, seus pacientes serão “impacientes”, inoportunos e sem educação (até porque podem estar sob o efeito de grande dor).

Você pode não ser agradecido, nem reconhecido ou elogiado. Quem sabe até injustiçado. Pense consigo, você pode suportar? Você quer suportar? A sua escolha deve ser como em um casamento: o padre sempre avisa da riqueza e da pobreza, da saúde e da doença: quem diz sim, o diz para tudo.

Com o prestígio do ofício, vêm os abutres. Quantos não estão cursando medicina pelo status social, pelo dinheiro prometido, ou ainda apenas pela experiência da vida festeira de universitário? Tudo isso pode estar no pacote, caso o amor também se faça presente. Sem amor primeiro, é tudo vazio neste coração de doutor. Assim, a indagação martela nas mentes: como um universitário interesseiro e exibido, que nunca se doou a nada, nem a ninguém, pode ser um bom médico? De onde tirará o amor que tudo suporta, que persevera? Ninguém pode dar o que não tem.

Seria possível que um estudante qualquer de medicina, na condição de escravo de aprovação, de likes em redes sociais, incapaz de reconhecer o esforço da família para formá-lo, que só se importa em figurar bem para os amigos nos ambientes sociais… seria possível que disso saia altruísmo, doação e abnegação de si? Doar-se não é lá tão impossível e atos como arrumar a própria cama já são ótimos sinais de ordem interior. A disciplina, a sinceridade, a submissão aos superiores, tão necessárias no dia a dia do médico: tudo isso começa pequeno, mostrando-se no dia a dia do estudante.

Se você não sente obrigação nenhuma para com ninguém, se o mundo inteiro (seus amigos, pais) está sempre errado e você certo, ou se a culpa de seus fracassos, ou más ações, nunca é sua, pobre vítima… falta-te o principal para ser um bom médico: o amor. E este só vem com maturidade, com a compreensão de que sua vida não é para você se entupir de si mesmo, mas um presente ao mundo: ao tiozinho da esquina que sofre, à criança resfriada e à fofoqueira insuportável do bairro. Desse modo, seus dias ganharão um sentido maior.

Muitos reduzem o sucesso na vida ao sucesso profissional. Nada mais equivocado! Quantos não são fracassados com contas bancárias gordas? Isso acontece porque sucesso verdadeiro é ter personalidade, maturidade. E isso só se alcança com consciência moral, que diferencia bem e mal, e que gera noção de dever. Mas o que será de uma geração de jovens médicos que tem horror à própria ideia de moralidade? De ordem? Ou com uma dificuldade imensa de compreender a necessidade de regras, de ritos… Serão eles ricos? É possível. E também miseráveis, porque imaturos e sem personalidade. No fim, ninguém é feliz assim, ou cumpre seu chamado no mundo, sua vocação.

Aliás, o que levaria um jovem médico a doar-se por alguém? Sem sombra de dúvidas, a certeza da dignidade da vida humana, e o conhecimento da sua transcendência. Infelizmente, esta geração tem receio até mesmo de dizer que uma vida humana vale mais que a vida de um papagaio, ou de uma lesma. Como amar o humano, se não se sabe o que ele é, ou quanto vale? Ingênuo pensar que um estudante imaturo e incapaz de amar tornaria-se imediatamente amoroso e dedicado pelo toque mágico do diploma em suas mãos.

Essa dinâmica se aplica a todas as profissões, mas o médico deve ser o primeiro da fila a entender a vida. Porque muitas vezes, ela está em suas mãos. Um bom exemplo a guiar os novatos de consultório pode ser São Lucas. Médico, artista e historiador. Com uma vida inteira doada ao conhecimento da verdade humana. Que a paixão pela beleza da existência também inspire você a cada dia, jovem médico, e te leve ao amor maior. Especialmente neste dia 18, dia do médico e de São Lucas, padroeiro da honrosa missão de curar.

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