A metamorfose de Mark Zuckerberg

Não se vê gente esquisita como antigamente. Nos tempos da outrora, quando nos deitávamos na relva de Marília e Dirceu para comer uvas selvagens e ler as revistas da Capricho, tínhamos também a honra de dividir o nosso mundo com tipos verdadeiramente estranhos. Ser bizarro era coisa séria. Em um dia, David Bowie se vestia de alienígena, no outro, Dercy mostrava os maracujás na televisão, no outro, Diego Maradona goleava com a mão, e no outro, Michael Jackson passeava com um macaco na Disneylândia.

O tempo correu e muita gente adotou para si a capa do “bizarro”, mas de um modo completamente desinteressante. Talvez, por se tratar de uma bizarrice não planejada. Esquisitice de principiantes, este tipo surge do amontoado de sugestões frenéticas da cultura de massa, e se sedimenta sobre o rascunho de uma personalidade real, formando uma casca confusa e oca. Em outros termos, é um negócio chato, que não convence e que requere esforço para ser gostado. Ora, somente uma personalidade real pode garantir licença poética para aliens, peitos antes da meia-noite, gols fora da regra e macacos famosos.

Veja Mark Zuckerberg, falastrão cujo crime maior fora inventar o Facebook: ele passou anos, até a semana passada, ocupando o lugar do esquisito mais desinteressante da face da Terra –irrelevante não… desinteressante! Abençoado com o brilho no olhar de um baiacu fora d’água, a originalidade facial de um Backstreet Boy, o alto astral de um garoto no Vietnã com saudade dos Beatles e a mesma variedade de camisetas de Seu Madruga, ele pedia para ser, praticamente, ignorado pelo restante dos mortais.

Agora, por efeito de uma reviravolta tão inesperada que mais parece roteiro de fábula, Mark deixou de ser um boneco de madeira para se parecer com um menino de verdade. Quem sabe fora engolido e cuspido por uma baleia do mar – o novo visual de surfista nos deixa imaginar. Seus olhos tomaram um brilho desconhecido. Suas camisas mudam de cor a cada aparição. Suas mechas capilares se enrolam numa surpresa às próprias raízes, que não se julgavam tão capazes.

A mudança estética impressiona, e no entanto é apenas o reflexo distante de uma outra, mais avassaladora e mais radical, mais interna e mais psicológica, mais abstrata que palpável. Por anos o Facebook foi a ferramenta mais poderosa de autoafirmação para as almas politicamente corretas através de suas diretrizes para “controle de conteúdo“. O politicamente correto, devo definir, é aquela seita sádica que se ocupa da criação de mil morais alternativas à realidade, morais tantas vezes dignas de roteiros do Monty Phyton, para depois forçá-las em cima de cada ser mortal, que mais cede por cansaço que por concordância racional.

Infelizmente, a compreensão do quão problemática é esta “nova moral” foge a milhares de mentes brilhantes. Primeiro: o politicamente correto é relativo demais para ser imposto como norma, já que ditames podem surgir a qualquer momento, oriundos da mente insondável de cada novo legislador. Segundo, ele preza antes por aparências de bom-mocismo social do que por uma busca sincera do bem. Terceiro: a pena por desobedecer o politicamente correto é normalmente mais severa e irrevogável que qualquer penitência religiosa –ao menos falava-se em perdão na época dos velhos confessionários.

As famigeradas diretrizes do Facebook, que por tanto tempo “coaram” o conteúdo publicado por milhões de pessoas, não se pautavam pela boa e suficiente “moral” da realidade: aquela de sempre, que busca o bem e a verdade dentro de cada situação. Orientavam-se antes por morais alternativas, morais duvidosas, morais surgidas ontem, da mente iluminada de algum político, de algum ideólogo, de algum sacrossanto governo do qual não se deve –God forbid!– duvidar.

Bastou isto ser mudado, há poucos dias, para que a beautiful people, aquela gente especial que lê Capricho deitada na relva, levantasse para o ar suas perninhas inquietas, como Gregor Samsa naquela manhã terrível. É que Zuckerberg, metamorfoseado de figura ignorável a interessante em segundos, publicou um vídeo para comunicar as mudanças de diretrizes do Meta –seu conglomerado de redes. E o que mudou? Isto: se os líderes globais (democráticos) costumavam ligar para que um conteúdo “perigoso” fosse removido, agora, são as pessoas, os próprios usuário do Facebook, que terão a chance de protestar, adicionando contextos diversos às publicações.

Ó, triste dia para a liberdade! O presidente do Brasil, outra reputação acima de qualquer suspeita –que com a graça de Deus ainda alcançará a honra dos altares– disse que as mudanças são “extremamente graves” e que elas podem ferir a “soberania nacional”. É uma coisa que lhe agrada falar, a “soberania nacional“. Decerto considera ser uma expressão chique, já que a emprega em qualquer contexto possível. De fato: é charmosa.

Quem sabe, a beautiful people também considere “extremamente grave” que as suas opiniões de grupo não sejam as mesmas compartilhadas pelo grosso das pessoas comuns, aquelas pessoas desinteressantes que não se ocupam de criar, para o mundo, novíssimos e intransigentes projetos de moral para brincar de Caesar. Por sinal, a este ponto, as palavras já tomaram seus sentidos opostos: controle é liberdade, intolerância é pluralidade, censurar é dialogar e democratizar significa tirar da mão de muitos para colocar na mão de poucos.

Mark admitiu: a mudança nas regras de conteúdo não dará conta de extirpar os crimes no ambiente virtual, mas certamente os reduzirão em número, já que o estado de “controle” e vigilância havia chegado naquele ponto calamitoso em que a tentativa de desfazer injustiças transmuta-se numa ferramenta grotesca para criar outras novas que superam as anteriores. Tinham, visivelmente e há muito tempo, “perdido a mão” para a vassalagem política.

Dou exemplo. Algumas raras vezes, quando divulgava meus artigos pelo “Meta”, decidia eu impulsionar a publicação mediante propaganda paga. Sabia que caminhava sobre ovos e que determinados posicionamentos –pensados, racionalizados e explicados– simplesmente não passariam na revisão de “diretrizes” da plataforma. Decidi, um dia, tentar mesmo assim. Tratava-se de um artigo em que critiquei o site “Quebrando o Tabu” por terem justificado o regime Chinês, que, segundo eles, “incentiva a harmonia à força” – eis o nível. Mas o Meta não aceitou divulgar o meu texto. Como esperado, o absurdo, se dito pela beautiful people, é a verdade que deve prevalecer.

De modo semelhante, uma tonelada de pessoas sérias, estudiosas e bem intencionadas têm sido, há anos, suspendidas de suas redes, excluídas da possibilidade de fazer propaganda do seu trabalho, cortadas em seu alcance, proibidas de falar e, via de regra, tratadas como “loucas” em redes que, no fim das contas, eram geridas a ferro e fogo por mãos político-partidárias enviesadas, como é típico a toda democracia de manicômio.

Quem não aguenta a livre discussão nem merece entrar nela, eis a boa verdade. É só disto que se trata: a demonização prévia de um discurso antes mesmo de ouvi-lo. Proibir com antecedência, coagir psicologicamente e constranger o detentor da mensagem para que uma nova “verdade” imposta e completamente questionável se torne, por falta de oposição, a estrutura mesma das coisas. O fundamento da nova realidade.

Dizem, também, que Mark Zuckerberg apenas mudou de pólo: que ficará sob a asa de Donald Trump –coisa que não parecia problema com o velhote anterior. Dizem, mas dizem tantas coisas! O fato concreto é que pouco interessa com quem ele se afeiçoa, beija ou faz amor na relva: desde que essa afeição não se torne o mesmo Leviatã de outrora, que, do mistério das águas, arrogava-se o direito de pressionar para que outros também se afeiçoassem –sem sequer notar. Esse Leviatã, que estava gordo e velho, “morreu matado” há poucos dias.

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