Trinta e três anos depois, algo tão ou mais brutal que o massacre do Carandiru ocorreu à luz do dia, em meio a comunidades densamente povoadas do Rio de Janeiro. A sociedade, anestesiada, ainda resiste a reconhecer que vivemos uma tragédia de proporções semelhantes, agora movida por interesses ainda mais inescrupulosos e indefensáveis do que as narrativas que tentaram justificar o horror de 1992, aquele que se abateu sobre corpos “pretos ou quase pretos de tão pobres” e, sempre, descartáveis.
Diante do horror da morte violenta e injustificável de servidores públicos das forças de segurança e de mais de uma centena de civis, é atordoante ouvir do chefe do Poder Executivo estadual a celebração dessa carnificina como um “sucesso operacional” das nossas incontroladas polícias militares instituição que, inclusive, perdeu dois oficiais. Da denominada “operação de contenção” também participou a Polícia Civil, da qual pareceram dois agentes. As mais de 120 pessoas que ainda aguardam identificação amanheceram — quase todas — em uma praça pública da comunidade da Penha, carregadas pelos próprios pais, irmãos, amigos e vizinhos.
É a mais sangrenta incursão estatal contra sua própria população em tempos de paz, mas não foi a primeira e certamente não será a última empreitada de morte das nossas polícias contra pessoas vulnerabilizadas e profundamente traumatizadas pelo cotidiano de violência extrema a que estão relegadas.
A grande mídia, do auge de seu exercício de poder e sede por lucro, converte a tragédia em espetáculo. Por meio de coberturas sensacionalistas, alimenta o medo e legitima a barbárie. É a concretização de uma verdadeira indústria do controle do crime, nos moldes previstos por Nils Christie no século XX . Os corpos são politizados, instrumentalizados e, mesmo após mortos, permanecem invisíveis para o Estado. Tornam-se mercadoria simbólica de uma sociedade que naturaliza e compartilha a morte com a mesma velocidade e banalidade com que divulga banalidades cotidianas. A tragédia vira produto. E o sofrimento, audiência.
O lucro não é só financeiro. Há também a transação de um capital político, transformando a chacina em palco eleitoral e motivo de reiteração de discursos de lei e ordem, que extrapolam toda e qualquer medida razoável, operando como motes de um genocídio em curso.
A morte se tornou paisagem. Um ruído distante entre o trânsito, as manchetes e as telas. O que deveria ser luto coletivo converte-se em estatística; o que deveria ser compaixão transforma-se em cálculo. É esse esvaziamento afetivo que permite que se comemore uma chacina, que se aplauda o sangue derramado como se mérito fosse. Pouco a pouco, estamos nos acostumando a viver entre corpos.
Infelizmente, não há esperança de uma mudança de perspectiva diante de tamanha violação do direito à vida das mais de 120 pessoas brutalmente assassinadas no dia 28 de outubro de 2025. A data entra para a história como um marco da distância abissal que nos separa de um processo criminal verdadeiramente democrático, onde a segurança pública é a protagonista, em um tom humanista, da transformação social. Ninguém, absolutamente ninguém, ganha com a tragédia do Rio de Janeiro. Perde a população, perde o governo do estado, perde a democracia brasileira. Enquanto a morte for a única resposta dada aos problemas cotidianos, não é crível acreditar que vivemos em um Estado verdadeiramente democrático e de direito.
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