Lobby de juízes investe milhões, ocupa CNJ e briga por penduricalhos
Associações emplacam dirigentes no CNJ, criado para controle externo de magistrados, e brigam por pagamento de bônus e indenizações a juízes
São Paulo — Apenas um dos 16 pedidos feitos ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela concessão de indenizações, gratificações e outras verbas para juízes neste ano não teve participação de associações de lobby pelos interesses corporativos da magistratura.
Estudos recentes mostram como essas associações têm enfileirado ações em busca de benefícios e vantagens a juízes e conseguido dominar até mesmo o CNJ, órgão criado para fiscalizar magistrados de todo o país.
Balanços financeiros obtidos pelo DE mostram gastos milionários dessas entidades com eventos, patrocínios de grandes empresas e relatórios periódicos sobre a defesa de penduricalhos e outras remunerações a magistrados.
As associações de juízes são privadas. Seus dirigentes, por lei, podem ficar afastados do exercício do cargo, com a manutenção de suas remunerações públicas, para exercer liderança dessas entidades. Mas decisões nos últimos anos têm concedido ainda mais direitos.
Segundo entendimento do CNJ, esses juízes podem, por exemplo, receber até algumas gratificações mesmo fora dos gabinetes para exercer a atividade, semelhante ao sindicalismo. Parte desses pedidos foi feita neste ano. Dos 16 pedidos por penduricalhos e indenizações julgados, seis foram aceitos, cinco foram adiados e cinco rejeitados.
O poderio dessas associações foi fortalecido ao longo dos anos, mesmo antes da promulgação da Constituição de 1988. Com forte trânsito na política, associações conseguiram obter, a partir de leis estaduais, até mesmo uma parcela dos valores pagos por quaisquer cidadãos para registrar certidões em cartório.
Em São Paulo, por exemplo, um porcentual de cada certidão de nascimento era destinado à Associação Paulista da Magistratura (Apamagis). A lei que estabeleceu o dízimo à entidade privada foi criada em 1983, no governo de José Maria Marin, durante a ditadura militar, e só foi derrubada pelo ex-governador Geraldo Alckmin, em 2001.
Após 1988, essas entidades ganharam a possibilidade de questionar leis junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o economista Bruno Carazza, autor do livro “O País dos Privilégios”, de lá para cá, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) foi a segunda maior litigante da Corte.
Até o início de 2024, moveu 276 ações, muitas delas em busca de benefícios a juízes, segundo o estudioso. Também houve questionamentos de leis que exigiam transparência do Judiciário. Foi a AMB que obteve em 2023, por exemplo, a decisão do STF que liberou juízes de todo o país do impedimento para julgar causas de clientes de escritórios de seus parentes.
Já a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) obteve a decisão de maior impacto sobre pagamento de indenizações nos últimos anos. A entidade recorreu ao Conselho da Justiça Federal (CJF) para conseguir o pagamento de 18 anos de adicional por tempo de serviço (ATS), conhecido como quinquênio — um aumento automático de 5% ao ano.
A decisão foi replicada por tribunais de todo o país, que chegaram a pagar supersalários de mais de R$ 500 mil em um mesmo mês a magistrados somente no último ano, como mostrou o DE. Outras associações têm atuado no STF e no CNJ para manter o benefício, que havia sido extinto em 2006 e, agora, foi ressuscitado.
Uma pesquisa do cientista político Rafael Viegas, estudioso do Poder Judiciário e do Ministério Público, mostra como as associações têm emplacado nomes no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado em 2005 para fazer controle externo e administrativo do Poder Judiciário.
Viegas encontrou, em 15 anos de composições do CNJ, a presença de 19% dos integrantes do Judiciário oriundos de entidades. O componente político também pesa: 20% dos integrantes do Judiciário que compuseram o órgão vem do Quinto Constitucional, o que indica que eram advogados e promotores com boas relações políticas.
“O CNJ encontra-se capturado pelos interesses corporativos de magistrados, vide o que a literatura internacional e nossas pesquisas revelam sobre a composição e a atuação normativa do conselho. Na realidade, a presença marcante de interesses corporativos da magistratura no conselho tem moldado a sua atuação. Muito por isso, o CNJ frequentemente se desvia de suas atribuições principais, como zelar pela probidade administrativa e disciplinar, e acaba favorecendo interesses da magistratura, zelando por privilégios de magistrados”, afirma Viegas ao DE.
O exemplo mais recente, pontua Viegas, é o da juíza Renata Gil, indicada por ministros do STF ao órgão, no fim de 2023. Até então, ela presidia a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), uma das grandes autoras de pedidos ao CNJ por vantagens e pagamentos a magistrados. Uma vez no conselho, ela deu duas decisões liminares que liberaram pagamento de gratificações a magistrados, mesmo em processos com a presença da AMB.
Balanços da associação obtidos pelo DE mostram o poderio financeiro da entidade. Somente com associados, a AMB arrecada, em média, R$ 1,3 milhão por mês. Com patrocínios, como de bancos públicos e de operadoras de saúde, recebeu R$ 5,9 milhões em 2022.
A associação organiza o maior congresso de magistrados do país, usualmente em resorts, com a presença de juízes e representantes dos maiores litigantes do país. Usualmente, a associação oferece uma festa a ministros recém-empossados no Supremo. Em 2022, a entidade chegou a gastar R$ 11,4 milhões em eventos.
O QUE DIZ O CNJ
Por meio de nota, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirma que “possui independência e administra o orçamento dentro da legalidade”. “A aplicação do teto constitucional no Poder Judiciário é regulamentada pelas Resoluções n.13/2006 e 14/2006 do Conselho Nacional de Justiça, que detalham as verbas que estão excluídas da incidência desse teto”, afirma.
“A Corregedoria Nacional de Justiça é responsável por acompanhar, apurar e determinar a suspensão de casos irregulares de pagamento a magistrados e servidores do Judiciário. Ou seja, os salários são fixados por cada tribunal e o CNJ exerce um controle posterior e examina eventual ilegalidade”, afirma.
O CNJ diz que “o Judiciário mantém o mesmo teto salarial desde 2018”, quando o Senado aprovou o PLC 27/2016, “apenas com o reajuste da inflação”. Portanto, diz, “jamais ultrapassou os limites de gasto”.
“Importante destacar que o CNJ não faz pagamentos de precatórios, uma vez que são pagos por meio de verbas da administração pública e essa modalidade de pagamento está prevista na legislação. Cabe ainda esclarecer que eventuais pagamentos de precatórios são oriundos de decisões judiciais transitadas em julgado”, diz.
A reportagem questionou formalmente o órgão sobre a necessidade de quarentena a magistrados oriundos de associações em razão da grande quantidade de ações dessas entidades junto ao órgão. O CNJ afirmou que “não há previsão legal na Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e eventual alteração depende de aprovação do Congresso Nacional”.
“O processo de escolha do indicado para ocupar vaga de conselheiro – após a indicação pela classe respectiva – também passa pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, seguido de aprovação pelo plenário daquela casa legislativa e, só então, nomeação pelo presidente da República. Portanto, é um procedimento que passa por diversas etapas que não cabe ao Poder Judiciário”, diz.
Procurada, a AMB não se manifestou. O espaço segue aberto.