Áudios de traficantes revelam operações monitoradas desde a Cidade da Polícia: ‘a gente tá na visão’, diz bandido
A Rua Araticum, antes uma das mais pacatas da região, virou alvo de disputa entre o tráfico e a milícia. Com recordes de assassinatos, hoje é conhecida como a ‘Rua da Morte’.
Áudios de traficantes revelam operações monitoradas desde a Cidade da Polícia
Áudios obtidos pela Delegacia de Homicídios da Capital mostram que bandidos do Comando Vermelho monitoram a movimentação de policiais desde a saída da Cidade da Polícia, que fica perto do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio.
A expansão da facção na Grande Jacarepaguá auxiliou o monitoramento criminoso.
“Daqui pra frente, quando sai da Cidade da Polícia, a gente já tá na visão. Passou da Ponte, embicou pra Penha, é sentido Campo Grande, eu já aviso. Três horas da manhã já tô na pista, filho. Ainda mais que veio papo de operação”, afirma o bandido em um áudio.
“Bope na Rocinha, dois blindados da Core e cinco ‘papa-bonde’ da Core foi, mas embicou ali pra Furquim Mendes. Passou da gente, foi sentido Campo Grande, a gente vai avisar sempre, pegou a visão?”, completa.
A investigação aponta que a Grande Jacarepaguá se tornou um ponto sensível por conta das florestas ao redor. Os bandidos usam as áreas de mata para se deslocar e até mesmo trocar tiro.
A polícia apurou que eles usaram o Complexo do Lins como entreposto para chegar até o Tanque a Freguesia pelo Maciço da Tijuca.
O Comando Vermelho invadiu áreas que eram controladas por milicianos ou que não estavam sob domínio de criminosos e adotou práticas como a extorsão para acesso a serviços básicos.
O avanço do crime organizado sobre a região de Jacarepaguá aconteceu em menos de 2 anos.
Os traficantes também usam drones para observar a movimentação de rivais.
O secretário de segurança pública reconhece que foi um erro que permitiu o crescimento da maior facção de traficantes do Rio.
“TAXAS DE ESTACIONAMENTO E BARRICADAS
Moradores da Grande Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, denunciam que traficantes cobram para estacionar e para manter barricadas.
A Rua Araticum, no Anil, é um exemplo da velocidade com que quadrilhas dominaram a região.
Até meados de 2022, era uma rua conhecida na vizinhança pela tranquilidade. Parte dela é uma área de casas e condomínios, nos pés da Floresta da Tijuca, com trilhas que levam a cachoeiras, como a do Quitite, no alto da rua.
Hoje, justamente essas características geográficas fazem dessa rua um ponto de disputa entre o tráfico e a milícia — sobretudo na região conhecida como sertão, que dá acesso a pontos de interesse das quadrilhas, como Rio das Pedras e Muzema.
“Foram botando ponto de venda de drogas ali. Essa região foi uma região que teve muitos mortos, porque tinham vítimas tanto do tráfico quanto da milícia. Como é uma região de fronteira, por vezes os traficantes matavam gente envolvida com a milícia, e milicianos matavam pessoas envolvidas com o tráfico. Então, estourou o número de homicídios naquela região. Então a Araticum ficou, inclusive, conhecida como a Rua da Morte”, explica o delegado adjunto da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), Leandro Costa.
15 MORTES EM 2023
Só em 2023, foram registradas 15 mortes na Araticum, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado — quantidade que deixou a rua em 2º lugar no ranking de vítimas na região, ficando atrás apenas da Cidade de Deus, com 22.
Violência na Grande Jacarepaguá — Foto: Reprodução/TV Globo
Rio das Pedras vem em seguida e é outra localidade que sofre com as disputas entre tráfico e milícia, com 13 mortes.
Quando o tráfico se instalou na Grande Jacarepaguá, adotou práticas que eram usadas pelas milícias que já dominavam partes dessa região.
A venda de drogas continuou, mas o que ajudou a alavancar as receitas do Comando Vermelho foram as extorsões a moradores e comerciantes.
Serviços públicos e particulares, como água, luz, gás e internet, são taxados pelos criminosos. Moradores precisam pagar mensalidade até para estacionar na rua.
‘TAXA DE BARRICADA’
Há poucos meses, traficantes criaram uma outra tarifa: a chamada “Taxa de Barricada”. Comerciantes são obrigados a pagar para ajudar o tráfico a colocar obstáculos nas ruas.
“A Taxa de Barricada fica com uma construção de barricadas dentro da comunidade. No Jordão, por exemplo, se não pagar, a gente é obrigado a fechar a loja. Todos os comerciantes são obrigados a pagar a Taxa de Barricada”.
“Colocam nas entradas para poder impedir o acesso de polícia, de carros estranhos, entendeu? E quem não ajudar, tá mandado. E quem tá mandado, morre”, diz um morador.
Áudios e conversas da quadrilha foram obtidos pela Delegacia de Homicídios durante a investigação que apurou a morte dos médicos na Barra da Tijuca, em 2023. O conteúdo ajudou a polícia a entender como a facção age e abrir novas frentes de investigação.
“Mandou ‘nós’ tomar a casa, tá ligado? ‘Nós’ foi e botou a mulher pra ralar, tá ligado? Aí, tipo, o Lesk falou: ‘vende a casa e cada um tira tua parte, dá 10 mil pra cada um de parte’. O cara tá vendendo a casa por 120 mil”.
Em partes de Jacarepaguá, o tráfico, que antes extorquia dinheiro para que os moradores usassem os serviços de internet que já existiam, agora criou as próprias empresas.
“Viram que o negócio é bom, por que não ficar com tudo? A fatia do bolo toda?”
Um morador diz que a instalação custa R$ 400, e para manter, são mais R$ 150. Os bandidos se apropriam de qualquer fonte de renda, legal ou ilegal.
“Cortam a sua internet, eu tinha internet, cortaram todas. Só tem uma, só pode uma”.
‘BAGULHO DÁ MAIOR DINHEIRÃO’
O traficante Juan Breno Malta Rodrigues, o BMW
Em outra conversa, um traficante relata ao chefe que pegou homens furtando cabos de energia e pede orientação sobre o que fazer.
“Se eles ‘quiser’ continuar trabalhando nesse bagulho lá roubando fio, mas vai ter que trabalhar pra ‘nós’, mano. Bagulho dá maior dinheirão, mano. Só aqueles ‘fio’ ali que eu vi ali na filmagem ali, ali dá mais de 15, 20 mil, mano”.
“Nós ‘vai’ botar na kombi, entendeu? Vai vender no ferro-velho, vai dar a parte deles e vai ficar com a parte da firma. Mas eles ‘vai’ trabalhar pra nós, mané”.
Com mais dinheiro entrando, os traficantes compram mais armas e fortalecem a quadrilha como um todo.
É o que mostra uma conversa entre um dos responsáveis pelo tráfico em Jacarepaguá, Juan Breno Malta Rodrigues, o BMW, e um integrante da cúpula do Comando Vermelho, do Complexo da Penha, Edgar Alves de Andrade, o Doca.
Eles falam a sobre compra de munição para fuzis. “Aí, o moleque tá trazendo aqui três caixas de AR e uma de 62”.
“De 223, não serve não. Mas a de 62, serve. E a de 40 e a de 9 serve também. Manda trazer. De 223, não pega no fuzil não, estraga o fuzil”.
Em outro áudio, quem dá dicas de munição para BMW, segundo a polícia, é Thiago Fernandes Virtuoso, o Tio Comel, que está preso desde 2022
“Não precisa nem dar tiro de 556 com ela. Se tiver com 100 ‘bala’ dela, acaba com meio mundo, só barulhão”.
De dentro da prisão, o bandido explica como conseguir a munição da pistola com quem é CAC — sigla para pessoas registradas como colecionadores, atiradores esportivos ou caçadores.
“O cara pegou, falou que ia pagar R$ 12 mil. Maior pistolão, Breno, papo reto. Maior pistolão, 45, mano. Os ‘bagulho’ dela é tudo fácil, mano, de conseguir. Os ‘cara’ que tem CAC ‘compra’ molinho”.
“Que bala é caro o que, mano… Os ‘cara’ do CAC ‘compra’ barato, pô. Eu vou ver aqui quem tem”.
Tio Comel é conhecido na polícia como o maior clonador de carros do Rio. E ele continua nessa atividade, numa espécie de revendedor de carros roubados.
“A boa é comprar os carros que tão vendendo lá na Penha, lá. O Gadernal. Entendeu? Três carros tá vendendo lá. Uma Ranger Diesel, um C4, a boa é essa. Não tem outro jeito. Quero fazer dinheiro”.
“Eles têm acesso muito fácil há uma diversidade de veículos. No decorrer da investigação, a gente teve acesso a informações de uma grande quadrilha de roubo e clone de carro. Essa atuação do tráfico, do aumento do crime de roubo de veículo, tá muito ligada a essa expansão. Eles roubam e imediatamente levam para um ponto onde refazem a placa, fazem chassi. Já põe o carro ou a serviço do tráfico ou o carro é vendido para gerar renda pro tráfico”, fala o delegado Leandro Costa.
“Vê quanto que ele cobra… pra fazer uma placa pra agora. Que o chefe vai vir aqui. Que o chefe tá mandando vir um carro aqui”, diz um traficante.
Os carros roubados são vendidos entre eles, que parecem ter um cardápio de produtos de crime. “Essa daí, tá a cara da Civil, mano. Vou desenrolar pro chefe. Tu quer quanto nela? ‘Nós’ botar pra dar o ataque”.
“Dois ‘igual’, vai chamar muita atenção. Ou os cara vai achar que é polícia, tá ligado? Ou vai pegar a visão que é bandido, mano. Pra ser dois ‘igual’, tinha que ser dois Corolla. Dois Corolla, jogar pretão, botar aquelas ‘sirene’ dentro, assim, aquelas ‘luzinha’. Que os ‘cara’ ‘vai’ achar que é segurança, algum bagulho de deputado”.
O secretário de Segurança Pública do Rio considera que a situação está estancada na região de Jacarepaguá desde o ano passado.
“O crescimento imobiliário em Jacarepaguá cresceu muito nos últimos 10 anos. Quanto mais pessoas, mais possibilidade de receita. E o que a Segurança Pública fez em 2024? Primeiro, estancar esse processo. Tiveram guerras? Sim, várias delas, mas não houve a tomada ou retomada de territórios por qualquer facção”, disse Victor Santos.
“Há um número muito significativo de operações. Então, a gente aumentou essa operação exatamente por conta disso. A população começar a ver o estado presente naquela região. A tutela do poder é do estado, e a gente não pode aceitar que esse valor seja invertido. E a população fica desacreditada porque são anos e anos convivendo com esse tipo de relação”.