Brasil tem “encontro marcado” com a crise em 2 anos, alerta ex-ministro da Fazenda

brasil-tem-22encontro-marcado22-com-a-crise-em-2-anos2C-alerta-ex-ministro-da-fazenda

Maílson da Nóbrega: país tem “encontro marcado” com a crise em 2 anos

Para ex-ministro da Fazenda, arcabouço fiscal virou “letra morta”, Lula não cortará mais gastos e tarifas de Trump são “desastre temporário”

Passados mais de 2 anos desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o seu terceiro mandato no Palácio do Planalto – e a apenas 18 meses das próximas eleições no país –, é muito difícil acreditar que o atual governo avançará no corte de gastos ou adotará outras medidas em prol da responsabilidade fiscal. A avaliação é do ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, que esteve à frente da equipe econômica entre 1988 e 1990, no governo de José Sarney.

Em entrevista ao DE, Maílson, hoje com 82 anos, vaticina que o Brasil não conseguirá escapar de uma grave crise fiscal caso o governo Lula não contenha a explosão dos chamados gastos obrigatórios, como saúde, educação, Previdência, fundos constitucionais e programas sociais. O corte dessas despesas não foi contemplado no pacote fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), em novembro do ano passado.

“Há estudos que mostram que, em 2027, toda a margem do arcabouço fiscal será ocupada por gastos obrigatórios. Isso vai colapsar antes. Já está ficando claro que esse estreitamento crescente da margem de gastos discricionários está causando uma dificuldade muito grande no Orçamento”, afirma o ex-ministro.

Para Maílson, se o governo não controlar a expansão de gastos, DE deve enfrentar uma crise, no máximo, até 2027 – coincidindo com o primeiro ano de mandato do próximo presidente da República, seja o próprio Lula ou outro nome.

“Ninguém sabe exatamente o momento em que a crise se instala. É uma fagulha”, diz o ex-ministro da Fazenda. “Se esse colapso vier mais cedo, acaba a chance de o presidente [Lula] se reeleger. Ou vai cair no colo do próximo presidente logo no início do futuro governo. O nosso encontro marcado com a crise dificilmente vai passar dos 2 próximos anos.”

Maílson classificou o arcabouço fiscal, aprovado ainda no primeiro ano do governo Lula, como “letra morta desde o começo”. “Ele padece do mesmo problema do teto de gastos. Você só pode conter os gastos, para evitar que eles cresçam em termos reais, se um grupo de despesas não crescer mais do que a média. Como os gastos previdenciários, de saúde e de educação crescem a um ritmo superior ao das demais despesas, o gasto obrigatório vai ocupando espaço. Em algum momento, isso dá errado”, observa.

Na conversa com a reportagem, o ex-ministro também disparou críticas à política tarifária imposta pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que aumentou taxas sobre diversos produtos importados de mais de 180 países – entre os quais o Brasil – e espalhou uma onda de incerteza e até pânico nos mercados globais nos últimos dias. Para Maílson, no entanto, trata-se de algo que não vai perdurar. Será um “desastre temporário”.

Os mercados vêm enfrentando forte turbulência nos últimos dias por causa do novo pacote de tarifas anunciado pelo governo Trump. Está se desenhando uma nova ordem do comércio global?

Estou ouvindo muita gente dizer isso, que é algo que veio para ficar. Na minha opinião, não é bem assim. É um desastre temporário. A estupidez das medidas do Trump é tamanha que o mundo não vai aceitar tudo isso passivamente. Ele impõe essas tarifas porque quer restabelecer o modelo econômico do século XIX, em que valia a “lei da selva”, a lei do mais forte. É assim que as potências ocidentais invadiram a China. É assim que os EUA tomaram uma parte do território dos espanhóis. Não é o mundo de hoje. O mundo atual, que foi liderado pelos próprios EUA, é o de uma ordem mundial baseada em regras e na qual as disputas são realizadas à base de dados, da informação, da análise, e não simplesmente porque alguém quer, como faz o Trump agora. Os efeitos dessas tarifas, se mantidas, será tão devastador que o próprio Trump pagará um preço por isso, quando o consumidor americano começar a se dar conta de que está pagando mais caro pelos produtos. Quando o americano médio, que mantém de 50% a 60% de seus recursos financeiros em ações, começar a ver que está perdendo dinheiro, Trump terá problemas. Ou quando as empresas começarem a ter dificuldade de produzir porque não encontram peças e componentes compatíveis com as situações de mercado. Tudo isso tende a gerar um movimento da sociedade americana em seus diversos segmentos, inclusive empresariais, para uma reversão de parte dessas medidas. É claro que o Trump não vai reverter tudo porque isso seria sua destruição política, visto que ele prometeu que faria o “tarifaço” e muita gente o apoiou.

Esse “desastre temporário” será suficiente para jogar o mundo em uma crise?

DE estamos caminhando para uma crise mundial caracterizada por uma combinação de inflação e estagnação. Devemos ter uma queda na atividade econômica mundial, e isso terá um efeito muito negativo sobre o eleitor republicano nos EUA. Por isso, ao meu ver, dificilmente o Partido Republicano será competitivo nas eleições de 2028. Este mundo construído sob regras é o que propiciou o maior período de prosperidade da história. E o grande beneficiário dessa realidade foi o povo americano, ao contrário do que diz o Trump. O atual presidente dos EUA é um analfabeto em matéria de teoria econômica e um completo analfabeto em matéria de história.

Alguns dos principais bancos norte-americanos vêm aumentando suas projeções acerca de uma possível recessão nos EUA. Este cenário é provável?

Sim. O Trump criou um ambiente de incerteza total na economia. Em um ambiente de incerteza, você não tem como fazer cálculo. É uma completa escuridão, ninguém consegue ver o que está à frente. Isso representa um freio no consumo. Quem estava pensando em trocar de carro, por exemplo, não vai trocar agora. Quem queria fazer uma viagem para o exterior vai pensar duas vezes. As empresas estão adiando seus investimentos. Negócios estão sendo adiados no mercado financeiro. Empresas que estavam em processo de incorporação e fusão… está tudo suspenso. Tudo isso, em última análise, significa redução muito forte da demanda, que é a soma de consumo mais investimento. Esse processo gera uma desaceleração da atividade econômica, abrindo espaço para uma recessão. Ainda não será uma depressão econômica, mas a probabilidade de os EUA entrarem em recessão é muito alta.

De que forma o “tarifaço” pode afetar a economia brasileira? No médio e longo prazo, pode haver algum benefício pela possibilidade de abertura de novos mercados para o Brasil?

Acho que essa tese de que o Brasil pode se beneficiar tem equívocos. Se você olhar simplesmente pelos números, é claro que o Brasil fica mais competitivo para exportar calçados, por exemplo, para os EUA. A tarifa brasileira é 10%, a tarifa chinesa é bem maior. Mas o raciocínio só é válido se essa situação for permanente. Para aumentar a produção e exportar para os EUA, nem todas as empresas têm capacidade ociosa. Então, elas terão de fazer um projeto, ver como vão financiar, fazer o estudo de mercado, estruturar uma base de distribuição nos EUA… todo esse processo pode levar de 2 a 3 anos. Acho que é mais prudente fazermos uma avaliação mais ampla sobre a questão. Não é só a diferença de tarifa. Um estudo mais amplo leva em consideração todas essas circunstâncias. No fim das contas, o fato é que o mundo inteiro vai acabar perdendo. Esta é uma guerra sem ganhadores. E, se todos perdem, o Brasil não tem como ganhar.

O senhor tem alertado sobre o risco de o Brasil enfrentar uma crise fiscal caso o governo não controle os gastos obrigatórios. Ainda dá tempo de evitar essa crise ou ela é inevitável?

Como diria Benjamin Franklin, só há duas coisas inevitáveis no mundo: a morte e o tributo. Há estudos que mostram que, em 2027, toda a margem do arcabouço fiscal será ocupada por gastos obrigatórios. Isso vai colapsar antes. Já está ficando claro que esse estreitamento crescente da margem de gastos discricionários está causando uma dificuldade muito grande no Orçamento. Está faltando dinheiro para a Embrapa, para o Seguro Rural, para esporte… o Exército fechou um centro de formação de atletas olímpicos porque não tem verba. O IBGE anunciou que está revendo o seu trabalho de pesquisa porque falta dinheiro. Isso vai se multiplicando. Daqui a pouco, não haverá dinheiro para manter os estudantes que fazem mestrado e doutorado no exterior. Não vai ter dinheiro para pesquisas em andamento na área de ciência e tecnologia. É neste momento que pode acontecer uma crise. Ninguém sabe exatamente o momento em que a crise se instala. É uma fagulha. E um dia todo mundo se dá conta de que ela veio. Se esses estudos estiverem certos, e eu acho que estão, o colapso vai acontecer até 2027. Não passa disso. Se esse colapso vier mais cedo, acaba a chance de o presidente [Lula] se reeleger. Ou vai cair no colo do próximo presidente logo no início do futuro governo. O nosso encontro marcado com a crise dificilmente vai passar dos 2 próximos anos.

Recentemente, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, disse que, justamente a partir de 2027, o próximo presidente, seja quem for, precisará aprovar um novo arcabouço fiscal se não quiser “detonar a economia”. O arcabouço virou letra morta?

O arcabouço é letra morta desde o começo. Ele padece do mesmo problema do teto de gastos. Você só pode conter os gastos, para evitar que eles cresçam em termos reais, se um grupo de despesas não crescer mais do que a média. Como os gastos previdenciários, de saúde e de educação crescem a um ritmo superior ao das demais despesas, o gasto obrigatório vai ocupando espaço. Em algum momento, isso dá errado. Estava implícito na formulação do teto de gastos o convencimento de que ele não seria sustentável sem reformas para reduzir o gasto obrigatório. Sem isso, ele fica inviável politicamente porque falta dinheiro para tudo. O arcabouço fiscal é diferente do teto de gastos apenas porque prevê um limite de crescimento anual de 2,5% da despesa. Acontece que a despesa obrigatória cresce acima de 2,5%! Então, o arcabouço fiscal, por definição, é inviável. A questão é saber quando isso ficará claro para os analistas e para o governo.

O pacote fiscal anunciado pela equipe econômica no fim do ano passado decepcionou o mercado. A 1 ano e meio da eleição presidencial, é possível acreditar que este governo fará os cortes necessários?

Não tenho dúvida de que os cortes vão ficar para o próximo governo. Primeiro, porque este governo já entrou no “modo sucessão”. A Secom seria mais bem denominada como Secretaria da Reeleição do Lula. O trabalho dela é fazer um filtro do que o Lula deve fazer ou dizer. Isso significa, em outras palavras, que a equipe econômica perdeu sua autonomia. O Lula já disse que não vai ter mais ajuste fiscal até o fim do ano. Todas as propostas da equipe econômica terão de passar pelo crivo do Sidônio Palmeira [ministro da Secom, que assumiu o cargo em janeiro deste ano]. Se ele disser que não pode, esquece, arquiva a ideia. Não me lembro de ter visto nada parecido. Esqueçam ajuste fiscal neste governo. Não vai ter.

O ministro Haddad voltou a cobrar agilidade do Congresso para a aprovação do projeto de reforma do Imposto de Renda, que amplia a isenção para quem recebe até R$ 5 mil por mês. O que o senhor achou da proposta? É viável?

Eu sempre duvidei se esta era a melhor hora para se apresentar essa proposta. Até porque o limite de R$ 5 mil é superior à média de rendimento da sociedade brasileira. Por outro lado, acho que o governo pode estar desperdiçando uma bela ideia, que é a tributação dos mais ricos. É fato que existem muitos investimentos que gozam de incentivos fiscais ou são isentos. A ideia que está sendo discutida em todo o mundo, sobretudo no âmbito da OCDE, é a de um Imposto de Renda mínimo. Os mais ricos pagariam imposto, de forma proporcional. O mínimo eles têm de pagar, e eu acho até que 10% é pouco. Poderia ser algo em torno de 15%. De qualquer forma, acredito que uma isenção deveria ser pensada mais à frente, não agora. Não é o momento de fazer isso quando o país atravessa uma situação fiscal delicada. Da forma como isso está posto, corre-se o risco de haver uma queda líquida de arrecadação.

Como o senhor avalia a atuação do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, à frente da autoridade monetária? Ele terá independência suficiente para tomar decisões que desagradem ao governo?

Eu escrevi um artigo, há mais de 1 ano, em que apostava que o Galípolo seria um presidente técnico do BC. A primeira razão para que eu acreditasse nisso é que o Galípolo conhece o desastre que foi a pressão de Dilma para o Tombini baixar a taxa Selic. Isso acabou contribuindo até para o impeachment dela porque se criou um ambiente de desconfiança e incerteza. Em tese, Galípolo não faria essa besteira porque conhece a história. Em segundo lugar, ele sabe que quem exerce esse cargo ganha tanta experiência e notoriedade que se torna candidato legítimo a posições mais elevadas, seja na academia, no sistema financeiro ou em uma organização internacional. Se o Galípolo ceder a um pedido do Lula, ele destrói seu patrimônio institucional imediatamente. Seria uma grande surpresa para mim, e acredito que para o mercado, se o Galípolo repetisse o Tombini.

A economia ainda é um fator determinante para decidir uma eleição?

O que nós estamos vendo é o populismo clássico. O governo Lula promoveu um gigantesco aumento de despesa e expandiu o crédito. Ele fica dizendo todo dia que é preciso colocar dinheiro na mão dos pobres, mas não se dá conta de que temos o lado da demanda e da oferta. Se você põe dinheiro na mão dos pobres e a oferta continua a mesma, vai ter inflação. Acho que a economia ainda é, sim, muito importante eleitoralmente. O efeito corrosivo da inflação sobre o eleitorado está presente em todos os países, com exceção daqueles autoritários. No caso do Joe Biden, seu governo foi derrotado pela inflação. No caso do Lula, sua popularidade caiu basicamente por causa da inflação. Sim, a economia continua relevante, principalmente na questão da inflação. Por isso, acho muito improvável que a recuperação de popularidade do Lula lhe devolva os índices de aprovação que teve no passado.

🔔Receba as notícias do Diário do Estado no Telegram do Diário do Estado e no canal do Diário do Estado no WhatsApp