Brasileiros presos como ‘ciberescravos’ reconhecem chefe condenado na China: ‘Busca por Justiça’

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Brasileiro escravizado em Mianmar reconhece chefe entre condenados na China por
‘ciberescravos’: ‘Marco na busca por Justiça’

Phelipe Ferreira e Luckas Santos aceitaram promessas falsas de emprego e
acabaram vítimas de tráfico humano de uma máfia em 2024; ambos conseguiram fugir
do local e foram resgatados. Um tribunal chinês condenou 39 membros de uma
família por centros de fraude em Mianmar e controlar escravos, 11 deles foram
condenados à morte.

KK Park, a fábrica de golpes que escravizava brasileiros Luckas Viana dos
Santos e Phelipe de Moura Ferreira — Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

O brasileiro Pehlipe de Moura Ferreira, de 26 anos, que foi mantido refém por
três meses por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar, no Sudeste Asiático,
afirmou que um dos membros da família Ming condenada na China
por controlar campos de “ciberescravos” era o chefe do complexo onde esteve
preso com outro brasileiro, Luckas Santos.

A BBC informou que um tribunal chinês condenou 39 membros de uma família notória
que dirigia centros de fraude em Mianmar, sendo 11 deles à morte. A reportagem
cita que a família trabalhava para um dos quatro clãs que controlavam a pacata
cidade de Laukkaing e a transformaram em um centro de jogos de azar, drogas e golpes.

Ao DE, Phelipe relatou que reconheceu o chefe do complexo onde foi escravizado
ao ver uma foto do tribunal divulgada pela imprensa chinesa. Ele relata que o
homem, além de comandar o local, o agrediu durante o período em que esteve em
cativeiro.

“O chefe chinês do ‘complexo’ onde fui mantido como ‘ciberescravo’ está entre os
membros da família Ming. Na época, eu conversei com ele. Ele me agrediu e
agrediu o Luckas também várias vezes. Isso não é só uma notícia, é um marco na
busca por Justiça. É um dia importante para todos nós que fomos vítimas desse
sistema. A voz dos sobreviventes não se cala”, afirmou Phelipe.

Ainda conforme a BBC, Mianmar prendeu vários membros dessas famílias em 2023 e
as entregou às autoridades chinesas. Além dos 11 membros que receberam sentenças
de morte, outros cinco receberam sentenças de morte com suspensão de dois anos;
11 foram condenados à prisão perpétua; e os restantes receberam penas de prisão
que variam entre cinco e 24 anos.

“É uma sensação de alívio, mas, ao mesmo tempo, uma sensação de desespero, pois
eles perderam nem metade dessa máfia. No mesmo complexo que eu e Luckas
estavam ainda existem pessoas lá. Mas a voz de uma vítima nunca deve ser
calada, pois nós que fomos vítimas e sobreviventes podemos alertar mais e mais
gente a não cair nesse golpe que prendem a nossa liberdade e destroem os nossos
sonhos”, ressaltou Phelipe.

O DE mostrou em fevereiro o caso de Phelipe e Luckas, que aceitaram promessas
falsas de emprego em 2024 e acabaram sendo vítimas de tráfico humano em KK Park,
Mianmar.
O local é considerado uma “fábrica de golpes online” (veja mais abaixo).

Eles conseguiram fugir ao lado de centenas de imigrantes e foram resgatados com a ajuda da ONG “The Exodus
Road” no dia 9. Dez dias depois eles retornaram ao Brasil.

> “Eles batiam na gente quase todos os dias. Era muito difícil. Sofremos
> bastante e tem amigos que estão lá ainda. Eu fui espancado e preso porque
> tentei entrar em contato com um amigo meu. Eles me colocaram na prisão por 20
> dias. Agora estou com minha família. Quero agradecer a todos que ajudaram.
> Estou muito feliz, sei que minha mãe ficou muito preocupada”, disse Luckas ao
> chegar ao Brasil.

Phelipe Ferreira contou ao DE sobre a rotina
de escravidão em KK Park. Segundo ele, havia um roteiro a ser seguido.

“Nesse script, a gente perguntava ao cliente, no primeiro dia, informações como
nome, idade, país onde morava, se era solteiro, casado, viúvo, com o que
trabalhava e o salário. Já no quarto dia, a gente pedia uma ajuda. Falava que
trabalhava numa plataforma online chamada Wish e, se ele ajudasse, ganharia uma
comissão de 30 dólares”, contou.

No outro dia, eles voltavam a pedir ajuda. O cliente ganhava a comissão, só que,
dessa vez, tinha que terminar algumas tarefas na plataforma e, para isso,
precisava fazer recargas.

Era aí que a gente começava a tirar o dinheiro do cliente. A primeira recarga
era de 150 dólares, a segunda, 500 dólares… até completar o valor de 5 mil
dólares.

Por ser brasileiro, o jovem foi obrigado a aplicar golpes em outros brasileiros.
Ele lembra que, sempre que terminava o turno, chorava no quarto.

> “Fiz a parte dos brasileiros e tentei enganar tanto mulher como homem, mas
> brasileiro é mais inteligente. Então, eles já sabiam que aquilo era golpe. Mas
> o pessoal de outros países, como Rússia, Ucrânia, países da América, era mais
> fácil de enganar”.

Ele contou que uma cliente do Caribe chegou a sofrer golpe de um chinês no valor
de 350 mil euros. Ela fez empréstimo e comprou uma casa, porque o golpista
prometeu que viajaria para viver com ela.

Depois, a máfia queria que o brasileiro tentasse extorquir mais dinheiro dela.
“Eu tentava desviar o assunto com ela, mas meu antigo líder falava: ‘Não, a
gente vai ter que dar golpe, ela é rica’. Eu tentava procurar gente mais pobre
para não dar certo o golpe, mas aí eu poderia ser punido. Era horrível”, contou.

Phelipe contou que ele e outros imigrantes trabalhavam, em média, 16 horas por dia
aplicando golpes.

“Às vezes, a gente trabalhava 22 horas por dia. Líderes de equipe, todos
chineses, nos monitoravam a cada 10 minutos. Se não cumprisse aquela meta, no
final do mês, eu ia receber a punição. A punição era eletrochoque, espancamento
ou squat down, que é fazer agachamento. Recebi punição três vezes”, afirmou.

O brasileiro não chegou ser eletrocutado nem espancado, mas recebeu três vezes a
punição de agachamento.

Tive que fazer, na primeira vez, 100 agachamentos em cima de uma plataforma que
tinha uma espécie de prego na parte de cima. Na segunda punição, foram 300 vezes
e, na terceira punição, foram 500 agachamentos.

Depois, ele mal conseguia andar: “A minha perna travou, mas, mesmo assim, eu
tinha que trabalhar”.

Phelipe viu outros reféns sofrendo agressões e pensou que uma hora seria morto.
No quarto dele, havia um homem de outra nacionalidade que tentou escapar sozinho
e, ao ser pego, foi espancado durante 20 dias, levou eletrochoque e foi preso.
Segundo ele, o homem depois ficou preso à cama de ferro com os pés amarrados.

“Eu pensava: ‘Vão matar gente’. Meu maior medo era levar choque. Porque eu sei
que isso pode matar a pessoa. O meu maior medo era esse”.

Abaixo, veja uma cronologia do caso:

Outubro de 2024

A mãe de Luckas conta que o filho recebeu uma proposta para trabalhar em um
cassino nas Filipinas no início de 2024. Após alguns meses no cassino, o
estabelecimento fechou e, como Luckas não tinha dinheiro para voltar ao Brasil,
procurou outras oportunidades pela região.

Pelo Telegram, ele recebeu um convite para trabalhar na área da tecnologia em
Mae Sot, cidade tailandesa na fronteira com Mianmar. A viagem foi marcada para 7
de outubro. Luckas, no entanto, acabou sendo levado por mafiosos para KK Park,
em Mianmar, e passou a ser escravizado.

Novembro de 2024

Phelipe é feito refém em novembro de 2024. O pai dele, Antônio Ferreira, conta
que o filho já havia trabalhado em 2023 em outros países e, em 2024, de volta ao
Brasil, teve uma proposta de emprego no Uruguai. Decidiu sair novamente do país
para trabalhar fora.

No Uruguai, recebeu pelo Telegram uma proposta de emprego na área da tecnologia
na Tailândia. Ao chegar, um motorista o buscou no hotel e o levou para Mianmar,
onde se tornou refém com outros imigrantes. O local é o mesmo onde Luckas já
estava. Os dois, até então, não se conheciam.

Dezembro de 2024

Phelipe ficou semanas sem dar notícia, até conseguir se comunicar escondido com
a família. O pai procurou a polícia, mas foi orientado a falar com a Embaixada
do Brasil Mianmar. Luckas também conseguiu se comunicar com a família. A mãe
dele passa a divulgar o caso nas redes sociais pedindo ajuda.

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