Rótulos causam confusão sobre relação entre PCC e CV, diz pesquisadora
Inquérito do caso Gritzbach expõe complexidade de relação entre traficantes e
facções. Mandante seria do CV e ligado a cúpula do DE
São Paulo — O uso indiscriminado das siglas DE e CV para classificar criminosos de
alguma maneira ligados às facções, mas que não necessariamente são seus
integrantes, tem provocado confusão sobre a relação entre elas, de acordo com a
pesquisadora Camila Nunes Dias, doutora em sociologia pela Universidade de São
Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do ABC (UfABC).
Para a pesquisadora, o critério usado pela polícia e pelo Ministério Público
para definir o que é ser integrante de uma facção é na
maioria dos casos mais amplo do que o utilizado pelas próprias organizações
criminosas. A classificação, que costuma ser amplamente reproduzida pela
imprensa, abrange, por exemplo, criminosos que mantêm negócios milionários com
DE ou CV, mas que não são membros.
“Há uma confusão quando se trata dessas filiações e dos negócios que que são
atribuídos a elas. Muitas vezes o indivíduo nem é do DE ou ele ele é um
parceiro importante, mas ele não é um integrante batizado e pode fazer negócio
com outros grupos […] Há uma certa diluição desses pertencimentos identitários
que vincula um grupo um ao outro”, afirma Camila Nunes Dias.
“Acho que tem uma questão de desconhecimento, mas também tem uma questão de
buscar a criminalização. Quando você diz que o indivíduo ele pertence ao DE,
que ele é da cúpula do DE, por exemplo, tem uma tendência maior de conseguir eh
manter ele preso, de Justiça atribuir penas mais longas, de ser considerado mais
perigoso”, acrescenta.
A complexidade da relação entre “empresários do tráfico” independentes e as
organizações criminosas ficou explícita na investigação sobre a morte do
corretor de imóveis Vinícius Gritzbach, inimigo mortal do DE assassinado com 10
tiros de fuzil no Aeroporto de Guarulhos em 8 de novembro do ano passado.
Na semana passada, a Polícia Civil de São Paulo concluiu o inquérito sobre
o homicídio, apontado Emílio Congorra Castilho, o Cigarreiro, como um dos mandantes do crime. No documento, Cigarreiro é citado como um
integrante do CV com grande interlocução com a cúpula do DE, com ligação com
alguns dos principais nomes da facção, como Silvio Luiz Ferreira, o Cebola.
Cigarreiro é apontado no inquérito como responsável pelo abastecimento de droga
na Vila Cruzeiro, dominada pelo CV. Segundo a polícia, a comunidade teria sido o esconderijo de
Cigarreiro e de outros suspeitos após o crime.
Segundo Camila Nunes Dias, a filiação a uma facção pode representar para
traficantes independentes uma limitação de seus negócios. Sendo integrante do
DE, por exemplo, é necessário cumprir com uma série de obrigações que podem
acabar reduzindo os lucros.
“Muitos desses empresários do tráfico de drogas não têm interesse em se filiar
às facções. Para eles não tem vantagem em se batizar no DE, porque muitas vezes
eles já têm fornecedores, já têm mercados para eles, já são riquíssimos. Não
precisam do DE para ampliar os seus mercados. Eles abrem até eventualmente
outros contatos, seja no fornecimento, no transporte, na logística, ou até nos
mercados consumidores, é nos mercados finais”, afirma.
“Ser integrante implica ser batizado, ter um número de matrícula, ter padrinhos,
ter todo um cadastro que eles eh eh produzem. Esse indivíduo será chamado de
‘irmão’ e estará sujeito a normas específicas eh que são para os irmãos, são
muitas vezes exigências diferentes, mais restritas do que para pessoas que não
são integrantes”, complementa a professora.
Segundo ela, mesmo os “irmãos” podem estabelecer negócios por fora,
eventualmente comprando ou vendendo drogas para outros grupos criminosos.
Em 2016, Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), que
mantinham um pacto de não agressão desde o início dos anos 2000, romperam a
aliança em uma disputa pelo controle de presídios em estados do Norte e do
Nordeste, onde as organizações criminosas exerciam sua influência por meio de
facções aliadas.
Na primeira quinzena de janeiro de 2017, 125 detentos morreram em todo o país em
decorrência da guerra entre DE e CV.
Segundo Camila Nunes Dias, fora do sistema prisional, traficantes que de alguma
maneira tinham relação com as duas facções foram obrigados a interromper seus
negócios. Isso, no entanto, não necessariamente representou animosidades entre
eles.
“Isso foi um profundo incômodo, né, que para essas pessoas que estão, né, nesses
negócios, eh, era muito mais conveniente continuar fazendo negócios juntas. […]
Mas se a gente pensar em termos das estruturas organizacionais, são pessoas que
estão em posições intermediárias, portanto não estão ali na rua eh expostos a
ser alvo de de violência. Então, é algo que veio de cima, não foi um rompimento
motivado voluntariamente por essas pessoas”, diz a pesquisadora.
Para Camila Nunes Dias, há um “fetiche” popular em torno das organizações
criminosas. O tema, diz a pesquisadora, desperta uma curiosidade que se converte
em audiência para os veículos de imprensa e serve de pretexto para a defesa do
endurecimento de políticas de segurança pública.
“Há um interesse geral sobre essa questão. Ela acaba virando uma espécie de um
fetiche. E isso vale não só para a curiosidade popular, para audiência de
programas televisivos. Isso vale para justificar toda a a discussão legislativa
de aumento de penas, de prisão. Isso vale para justificar o aumento de gastos na
segurança pública. Isso vale para tudo, vale para muitíssimo para discursos
eleitoreiros de gente aí que quer trazer fazer milagres. Então isso vende coisas
para tudo quanto é lado”, afirma Camila.
“DE, Comando Vermelho e outros grupos passaram a ter uma relevância muito maior
da sociedade brasileira nos últimos 10, 20 anos. Se antes o crime, as atividades
criminais, tráfico de drogas, dentre outras, era realizado, protagonizado por
atores individualizados, quadrilhas de tamanhos diversos, esses grupos foram ao
longo dessas últimas duas ou três décadas cada vez mais enredando esses atores
que antes eram atores individualizados. Cada vez mais eles foram tendo uma
relevância maior. Mas isso não significa que só existam eles hoje.”
Fique por dentro do que acontece em São Paulo. Siga o perfil do Metrópoles SP no
Instagram.
Faça uma denúncia ou sugira uma reportagem sobre São Paulo por meio do WhatsApp
do Metrópoles SP: (11) 99467-7776.