Crise do Metanol no Brasil: Professor da USP defende monopólio estatal de bebidas alcoólicas

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Brasil deveria ter ‘Petrobras das bebidas alcoólicas’ para garantir qualidade
após crise do metanol, diz professor da USP

Para Henrique Carneiro, monopólio estatal geraria recursos ao Orçamento público
que poderiam ser gastos com educação e saúde, além de maior controle sobre
qualidade e distribuição.

Fiscalização tenta rastrear uso de metanol em bebidas

A atual crise de intoxicações por metanol no Brasil tem origem num modelo de
regulação “hiper liberal”, fruto de uma economia que durante séculos foi baseada
na produção de derivados de cana-de-açúcar, como o açúcar e a aguardente,
considera o historiador Henrique Carneiro, professor de História Moderna da
Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Laboratório de Estudos
Históricos das Drogas e da Alimentação (Lehda).

“Nós tivemos aqui uma economia e uma cultura, em relação ao álcool, muito
leniente, vinculada ao conceito que Gilberto Freyre chama de ‘sacarocracia’. Por
isso, aqui nunca houve nenhum tipo de restrição”, observa Carneiro, que também é
membro da associação internacional de historiadores Alcohol and Drugs History
Society (ADHS).

Como alternativa, o historiador defende a adoção no Brasil de um modelo mais
próximo ao de países como Canadá, Suécia e do Uruguai até anos atrás, em que o
Estado detém o monopólio da distribuição de bebidas alcoólicas no atacado.

Seria uma espécie de “Petrobras do álcool”, diz o pesquisador.

“A primeira vantagem é que toda a renda é direcionada para o Orçamento do
Estado, que vai atender as áreas de educação, de saúde, inclusive as áreas que
devam tratar dos impactos do uso abusivo [de álcool] que causa uma enorme
despesa de saúde pública”, argumenta Carneiro.

Além disso, diz ele, haveria maior controle da qualidade e da distribuição em
relação a horários, locais de venda e ao acesso exclusivo para maiores de idade.

“O Estado passaria a ter acesso a uma fonte de renda que equilibraria o déficit
fiscal e que traria uma enorme vantagem. Aliás, eu acho que esse modelo tinha
que ser para todas aquelas chamadas ‘indústrias do vício'”, defende o
pesquisador. “As apostas também. É um absurdo que elas sejam privadas.”

Em entrevista à BBC News Brasil, Carneiro relembrou a história da relação humana
com as bebidas alcoólicas e avaliou como positiva a redução do consumo em meio à
crise.

“O álcool, apesar de ser uma das [drogas] mais universais, é uma das mais
perigosas, sobretudo na forma do destilado. Ele traz consequências e tem se
tornado, no Ocidente, uma espécie de única alternativa de diversão pública com o
uso de substâncias psicoativas, o que torna ele muito pervasivo, muito invasivo
da vida da esfera pública”, diz Carneiro, que afirma que seria desejável uma
redução permanente do consumo, sobretudo dos destilados.

“Isso também envolveria uma legalização de outras substâncias que muitas vezes
são de impacto muito menos daninho e que poderiam ser alternativas de diversão
pública, de desinibição, de criar um espaço gregário, celebrativo, como ocorre
com a maconha ou com o chimarrão”, defende.

Até a quarta-feira (15/10), a crise do metanol já havia feito oito vítimas
fatais, seis delas no Estado de São Paulo e duas em Pernambuco, segundo
informações do Ministério da Saúde.

Também foram registradas 148 notificações de intoxicação por metanol após
consumo de bebida alcoólica, sendo 41 casos confirmados e 107 em investigação.
Outras 469 notificações foram descartadas. O Estado de São Paulo concentra 61%
das notificações, com 33 casos confirmados e 57 em investigação.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Henrique Carneiro.

BBC News Brasil – Como o modelo brasileiro de regulamentação de bebidas
contribuiu para a crise do metanol?

Henrique Carneiro – O modelo brasileiro é fruto de uma economia que durante
muitos séculos foi baseada na produção de derivados de cana-de-açúcar, sobretudo
o próprio açúcar e a aguardente.

Então, nós tivemos aqui uma economia e uma cultura, em relação ao álcool, muito
leniente, vinculada ao conceito que Gilberto Freyre chama de “sacarocracia”. Por
isso, aqui nunca houve nenhum tipo de restrição.

As restrições que aconteceram foram muito recentemente. Por exemplo, a não
permissão de publicidade de destilados foi recente e, na verdade, ela é pouco
eficiente porque não se aplica à bebida mais consumida, que é a cerveja.

Então o modelo brasileiro é um modelo no qual grandes empresas internacionais
controlam o mercado, definem os preços, fazem até vendas casadas. E com isso
eles colonizam o mercado alcoólico brasileiro, extraindo uma renda
extraordinária que é pouco ou quase nada devolvida à sociedade.

BBC News Brasil – E de que forma isso se relaciona com a crise do metanol que
vivemos atualmente?

Carneiro – Porque a fiscalização do Estado deve ser exercida não só no aspecto
puramente fiscal, ou seja, na taxação, etc, que já é também bastante
problemática.

Aqui se baixou recentemente o imposto de cerveja e no novo imposto que a reforma
tributária apresentou [o Imposto Seletivo sobre produtos considerados
prejudiciais à saúde e meio ambiente, como veículos, loterias, álcool e
cigarros] ainda não está definido qual que vai ser a cota específica para a
indústria de destilados.

Mas, além da fiscalização, o principal elemento é o controle sanitário e 30% das
bebidas destiladas são clandestinas, o que mostra uma ineficiência enorme nos
processos de fiscalização e mesmo repressão a essa atividade criminosa.

A expressão disso é o fim do sistema que havia até 2016, que era o sistema de
controle da produção de bebidas, o Sicobe. E isso era uma forma de se
estabelecer um controle mais efetivo.

Agora, eu sou muito defensor de um outro modelo, que é o modelo canadense. É um
modelo que também existiu em países da Escandinávia — na Suécia, no Uruguai,
aqui do lado — que é o controle monopolista do Estado na distribuição de bebidas
no âmbito atacadista.

Então, restaurantes, supermercados, bares teriam que comprar exclusivamente de
um distribuidor que fosse de inteiro controle e de inteira renda para o Estado.
É o modelo das empresas provinciais, que no Canadá têm esse monopólio, que
aliás, é o mesmo modelo agora para maconha no Uruguai.

Era o modelo da Ancap [Compañía Ancap de Bebidas y Alcoholes, uma divisão da
empresa estatal uruguaia Ancap que produzia e comercializava bebidas alcoólicas
e cuja atividade foi encerrada em 2018] que se relaxou em relação às bebidas,
mas que controla ainda a distribuição de combustíveis.

Tanto que os postos de gasolina são exclusivamente dessa empresa no Uruguai.

BBC News Brasil – Além desse do nosso modelo leniente, desse modelo canadense de
controle do Estado, existem outros modelos de regulação no mundo?

Carneiro – Sim, existem vários. Há um modelo de tipo proibicionista que é de
simples proibição, que é o que ocorre no Irã, na Arábia Saudita e em alguns
outros países de governos fundamentalistas islâmicos.

Nós já tivemos esse modelo proibicionista no Ocidente, tanto nos Estados Unidos,
na Lei Seca de 1920 a 1933, como no Canadá, por um período muito mais curto. Na
Escandinávia também.

E esse modelo se revelou inteiramente inadequado, porque ele criou sequelas, que
são as mesmas da guerra às drogas hoje em dia.

Houve impacto na saúde pública, porque as bebidas não são controladas. Então
houve uma contaminação de metanol enorme nos Estados Unidos, na Lei Seca, que
foi muito relevante.

E você não tem sobretudo o controle do mercado, que se torna um mercado
paralelo, gerido por organizações criminosas, sem auferir qualquer renda fiscal
ou de qualquer outro tipo para o Estado e organizando o negócio por meio da
violência. Então podemos dizer que o modelo proibicionista fracassou.

Há um modelo hiper liberal, digamos assim, que é em grande parte o modelo
brasileiro, que faz, inclusive, com que a indústria do álcool seja uma das
principais do país.

E tem esse outro modelo, mais controlador, que não é modelo exclusivo de países
como a China, onde também existe uma grande presença estatal, mas ocorre num
país [o Canadá] de enorme influência do Partido Liberal, que foi inclusive o
responsável por implementar esse controle estatal da distribuição.

BBC News Brasil – E quais são as vantagens desse modelo que o senhor defende?

Carneiro – A primeira vantagem é que a renda é auferida para o interesse
público, ou seja, toda a renda é direcionada para o Orçamento do Estado, que vai
atender as áreas de educação, de saúde, inclusive as áreas que devam tratar dos
impactos do uso abusivo que causa uma enorme despesa de saúde pública.

Depois, o controle da qualidade, o controle da distribuição em relação a
horários, a locais de venda, a acesso exclusivo para maiores de idade.

Então, esse é um modelo muito bem sucedido, que foi o contraponto canadense à
proibição americana e que se revelou até hoje um modelo que tornou o Canadá um
Estado com um enorme orçamento vinculado a esse setor econômico.

BBC News Brasil – No Brasil, a gente já teve experiências de maior controle pelo
poder público, que tiveram algum impacto positivo?

Carneiro – Não. No Brasil, a gente tinha, talvez, uma situação pior antes da
revelação, a partir dos anos 1960, 1970, dos malefícios do tabaco e, por
consequência, também a denúncia dos riscos associados tanto ao consumo crônico,
como ao consumo agudo do álcool, que são dois padrões de consumo problemático
diferentes e os dois têm impacto na saúde.

[Nota da redação: O consumo crônico de álcool é o uso excessivo e prolongado que
causa danos a longo prazo, como doenças hepáticas, cardiovasculares,
neurológicas e câncer. Já o consumo agudo é a ingestão de grandes quantidades de
álcool de uma só vez, podendo levar à intoxicação, acidentes e, em casos
extremos, à morte.]

Então, aí começou a haver uma política de controle muito correta, de que não se
fuma em lugares públicos, de que não se pode ter a publicidade do tabaco e das
bebidas destiladas de forma assim descontrolada.

Então, eu acho que tem havido avanços no sentido de a gente se dar conta de que
a circulação de produtos que envolvem um risco e até mesmo o risco do impacto do
consumo abusivo ou dependente.

Mas eles não podem ser proibidos, porque aí é uma tragédia — e a situação atual
da maconha, da cocaína e de outras drogas revela isso. Mas também eles não podem
ser deixados ao bel-prazer das flutuações do mercado e dos seus grandes e
poderosos proprietários.

BBC News Brasil – Esse modelo que o senhor defende seria uma espécie de
“Petrobras do álcool”, dá para dizer assim?

Carneiro – Exatamente.

BBC News Brasil – E faz sentido onerar o Estado com mais essa função, num
mercado que tem bastante dinamismo do setor privado hoje?

Carneiro – Pois é, mas o dinamismo está ligado a uma enorme rentabilidade desses
produtos, que são alguns dos principais da economia dos bens não duráveis, e que
fazem dos fabricantes deles as maiores empresas do país.

Eu acho que isso é indesejável. É um regime quase monopolista, privado, seja das
indústrias internacionais, como das próprias indústrias brasileiras, que hoje
também se internacionalizaram em grande parte.

Então, acho que não teria ônus algum ao Estado, só teria um bônus.

O Estado passaria a ter acesso a uma fonte de renda que equilibraria o déficit
fiscal e que traria uma enorme vantagem. Aliás, eu acho que esse modelo tinha
que ser para todas aquelas chamadas “indústrias do vício”.

As apostas também. É um absurdo que elas sejam privadas. Teria que haver
estatização do sistema de apostas, eventualmente até de cassinos, como ocorre
também no Canadá e no Uruguai, em que até os cassinos são do Estado.

BBC News Brasil – No Canadá, há regras bastante rígidas como a proibição de
consumo [de álcool] em espaço público. Isso faria sentido no Brasil, na visão do
senhor?

Carneiro – Eu acho que não, acho que essas regras canadenses são excessivas.

Temos que ter um controle do consumo no espaço público. Mas o canadense, assim
como o [modelo] dos Estados Unidos, proíbe o consumo de álcool [em espaços
públicos].

Salvo algumas exceções, em algum tipo de show que possa ter cerveja, em
piqueniques, pode ter vinho. Mas, em geral, ninguém pode andar pela rua tomando
uma latinha de cerveja. Teoricamente, isso é proibido.

Assim como o fumo também é muito regulado. Em geral, os edifícios todos têm uma
área de contenção de oito, nove, dez metros.

Há uma restrição que eu acho que, no caso brasileiro, não teria sentido.

A gente poderia sim, estabelecer zonas. Por exemplo, na praia. Eu acho que fumar
tabaco na praia é um direito, mas também é um direito você não querer ficar
fumando um cigarro alheio.

Então deveria ter zonas para fumantes e para não fumantes ou eventualmente,
zonas em que pudesse consumir álcool e outras que não.

Eu acho que é perfeitamente possível a gente fazer como fizemos com o cigarro,
inclusive com em aeroportos, em que há zonas específicas para esse uso.

Outra coisa é o horário. Há também um modelo em vários países de que a partir de
uma certa hora, os bares não podem mais servir bebidas. Em geral, 23h.

Os bares continuam abertos, mas eles param de servir [bebidas alcoólicas], o que
é, talvez, uma hipótese também a se estudar.

BBC News Brasil – Isso para quê? Para redução de consumo? Para redução de
violência, esse tipo de coisa?

Carneiro – Para tudo: redução de consumo, redução de violência, redução de
ruído. Porque a partir das 23h, isso vai ser um enorme incômodo público. Pessoas
fazendo algazarra, alcoolizadas.

Então, para um controle, digamos assim, da necessária tolerância social que a
gente deve construir em relação a todas as drogas.

Se as pessoas querem consumir, nenhuma [substância psicoativa] tem um sentido
que seja essencialmente diferente das outras.

Têm impactos de saúde diferentes, têm riscos maiores ou menores, mas, no sentido
de que alguém queira modificar a sua psique usando elementos externos, ele pode
usar tabaco, álcool, cocaína ou o que for, desde que ele respeite a
coletividade, inclusive no sentido de que esse uso não pode afetar os que não
usam.

BBC News Brasil – Na semana passada, uma operação da Polícia Civil revelou que
uma fábrica clandestina ligada a alguns dos casos de intoxicação estava
comprando etanol adulterado com metanol de um posto de combustível. Isso levou a
suspeitas de que o PCC possa estar envolvido

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