O “muro da discórdia” que privatizou paraíso no litoral de Pernambuco
Críticos dizem que caso é alerta para riscos que envolvem PEC das Praias.
Barreira foi erguida por empresário na praia de Maracaípe
Ao lado de um dos destinos turísticos mais badalados do litoral brasileiro, a praia de Maracaípe costumava ser uma alternativa ao agito de Porto de Galinhas, em Pernambuco. Sem sofrer a mesma pressão do mercado imobiliário e do turismo de luxo do balneário vizinho, Maracaípe costumava se destacar pela tranquilidade e preservação da natureza.
Há dois verões, entretanto, a realidade mudou. O local está no centro de uma disputa pelo direito de acesso à praia. Um muro de 576 metros foi erguido na área do pontal, onde o Rio Maracaípe se encontra com o Oceano Atlântico, limitando o acesso de barraqueiros, turistas e moradores locais à faixa de areia e ao manguezal. A estrutura, erguida por um empresário local, foi inicialmente autorizada pela Agência Estadual do Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), mas depois considerada irregular tanto pelo órgão quanto pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Há dois meses, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) determinou a retirada do muro. Entretanto, mais um verão começa neste sábado (21/12) e a estrutura permanece em pé, evidenciando a vulnerabilidade dos terrenos na costa brasileira à ocupação irregular. Nesta semana, o caso foi enviado à Justiça Federal, e a decisão estadual foi suspensa.
O embate em torno do pontal começou em 2022, quando a CPRH concedeu uma autorização de construção para o empresário João Vita Fragoso, dono de quatro terrenos em Maracaípe, segundo registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A autorização permitia a construção de um muro de 250 metros de extensão no imóvel “Propriedade de Pontal de Maracaípe”, com dez hectares. Na época, a justificativa era a existência de uma erosão costeira no local.
Mas um relatório produzido pelo Ibama, depois de denúncias, apontou que o muro extrapolou em duas vezes o tamanho permitido. O documento, baseado em uma vistoria realizada em dezembro do ano passado, identificou pelo menos cinco impactos ambientais da construção. Um deles é a poluição ambiental na Área de Proteção Ambiental (APA) Estuarina dos Rios Sirinhaém e Maracaípe, causada pelos restos de sacos de ráfia usados para fazer o muro. O Ibama constatou ainda que não havia erosão costeira na área. Pelo contrário, o muro contribuía para causar a erosão.
Diante dos relatórios, a CPRH cancelou a permissão para construção do muro em maio, mas os proprietários do terreno conseguiram uma liminar na Justiça impedindo o Estado de adotar medidas para remover o muro. Em outubro, a liminar foi derrubada, mas agora caberá à Justiça Federal decidir.
No Brasil, as praias são consideradas bens de uso comum do povo, de acordo com o que estabelece a Constituição de 1988 e o decreto-lei sobre bens imóveis da União, de 1946. As faixas de litoral que são consideradas terrenos de marinha contam 33 metros a partir do mar em direção ao continente. A referência para contar são as marés máximas do ano de 1831.
Segundo o Ibama, não há uma lei que regulamente a construção de muros em áreas de praias. Na prática, os municípios ou estados podem conceder autorizações. Por outro lado, a legislação veda qualquer intervenção em área de restinga. No caso de Maracaípe, um empresário ergueu um muro extrapolando a área concedida pela União, apontou o relatório da SPU.
Integrantes de ONGs que trabalham na região questionam também os títulos do imóvel e dizem que desde a construção do muro, a família tem erguido outras propriedades dentro do mangue. No local, foi instalada uma placa de madeira com os dizeres “Pontal dos Fragoso”.
O Pontal de Maracaípe costumava ser uma área aberta, pela qual era possível chegar por cinco acessos, conta Ana Paula Rocha, 40 anos, barraqueira que atua há 10 anos no pontal. O acesso era pela própria areia da praia, por trilhas dentro do manguezal e também com o uso de jangadas. No entanto, desde a construção do muro, o acesso foi limitado e os moradores e trabalhadores locais enfrentam dificuldades para chegar à praia.
A situação de Maracaípe tem sido considerada por movimentos de pescadores, ribeirinhos e parlamentares que se opõem à PEC das Praias como um exemplo do potencial impacto que a proposta pode ter caso seja aprovada no Senado. Aprovada pela Câmara dos Deputados em 2022, a proposta pretende permitir a transferência de terrenos da União a entes privados e governos locais, o que levanta preocupações sobre a privatização de áreas públicas e seu impacto na comunidade local.
Enquanto enfrentam localmente os desafios impostos pelo muro, os barraqueiros e marisqueiras de Maracaípe também se articulam para protestar contra a PEC. “A gente depende da praia e do mangue. A nossa luta é em busca de trabalho e liberdade. Que a praia seja uma área livre, pois é a única coisa que a gente tem”, explica Rocha. Procurado, o empresário João Vita Fragoso não respondeu até a publicação desta reportagem. A comunidade local continua lutando por seus direitos e pela preservação do ambiente natural de Maracaípe.