Uma disputa de terras na zona rural de Santo Antônio do Descoberto, município goiano no entorno de Brasília, revela uma trama judicial que se arrasta por décadas e que ganha forças com a aproximação das eleições presidenciais de 2026.
Enxergando potencial em levar a pauta para discussão nacional, três deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) e a Superintendente Cláudia Farinha do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estiveram no povoado Antinha de Baixo, de onde o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) determinou a desocupação de 66 casas.
A comoção tem intenções político-eleitoreiras por trás: a terra tem como um dos herdeiros parente do governador Ronaldo Caiado (União Brasil). O chefe do Executivo goiano tem ganhado relevância no debate nacional e busca o cargo de presidente da República, ocupado hoje por Luís Inácio Lula da Silva, figura máxima do PT.
Origem da disputa
O processo de divisão da Fazenda Antinha de Baixo tramita no Judiciário goiano desde 1945. Em 1990, a sentença reconheceu o direito de 11 proprietários, ratificado definitivamente em 1994 após a rejeição dos recursos. Entre os titulares, estava a senhora Maria Paulina Boss, já falecida, que foi casada com um tio do atual governador de Goiás. Todos os 11 proprietários possuíam documentação registrada e terras demarcadas.
Após a confirmação judicial dos títulos, diversos ocupantes ingressaram com ações de usucapião, todas posteriormente arquivadas. O reconhecimento dos verdadeiros proprietários levou o Judiciário a determinar, já em 2015, a desocupação do imóvel, medida reforçada em decisões posteriores, inclusive por tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Os problemas se agravaram nos últimos anos, quando se iniciou a venda irregular de pequenos lotes da fazenda, comercializados como chácaras de lazer, quase sempre com piscinas e churrasqueiras. Essas transações caracterizam parcelamento ilegal, sem qualquer autorização judicial ou ambiental. Corretores e compradores participaram de negócios sem documentação de propriedade, buscando lucrar com a invasão das terras.
Em janeiro de 2024, uma nova ordem de desocupação foi expedida pela Justiça. Em março do mesmo ano, a ação foi suspensa por um ano para análise aprofundada da Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça de Goiás, que organizou audiências com todos os envolvidos, buscando garantir direitos sem atropelar as decisões judiciais.
Em seguida, uma série de recursos foi apresentada. O STF negou seguimento a três reclamações constitucionais, reafirmando a legalidade do processo, enquanto o STJ rejeitou outras tentativas de suspensão. As decisões mencionavam a intenção dos ocupantes de apenas retardar o cumprimento da sentença.
Em 28 de julho deste ano, a juíza Ailime Virgínia Martins, da 1ª Vara Cível da comarca de Santo Antônio do Descoberto, permitiu que 16 famílias vulneráveis, que residem na fazenda Antinha de Baixo, permaneçam temporariamente nas terras, determinando a desocupação das 66 casas restantes. A decisão veio após análise de vulnerabilidade social conduzida por órgãos como a Defensoria Pública e a Comissão de Soluções Fundiárias do TJ-GO.
Narrativas políticas e a releitura dos fatos
Com a proximidade das eleições presidenciais de 2026, o caso passou a ter repercussão política. Uma autodeclaração de “quilombola” foi registrada em junho de 2025, semanas antes da data determinada para a desocupação e anos após o início da ocupação clandestina, sem qualquer documento ou estudo antropológico que reconhecesse a descendência de pessoas escravizadas no local. Em processos antigos, os supostos quilombolas admitiram ter comprado terras e se mudado para a área no ano de 1957, sem vínculo com a questão étnica-ancestral.
A autodeclaração encaminhada ao Incra, entidade federal ligada à reforma agrária e à regularização fundiária, levou à paralisação temporária do cumprimento da sentença e ao envio do processo à Justiça Federal. A suspensão foi celebrada por políticos (alguns fora de Goiás) que se opõem ideologicamente a Ronaldo Caiado.
A nova narrativa política tenta transformar antigos proprietários em “grileiros” e ocupantes clandestinos em vítimas e, agora, em remanescentes de quilombos. Documentos e decisões judiciais, no entanto, apontam em sentido oposto: o conflito fundiário existe, mas a tentativa de atribuir-lhe agora traços identitários e sociais corresponde mais a estratégia eleitoral do que a fatos concretos.
A oposição ao governador (e pré-candidato a presidente) Ronaldo Caiado esforça-se para vinculá-lo ao caso, mencionando, o parentesco com um dos herdeiros de parte da fazenda.
Caso se comprove o uso indevido de recursos públicos ou instrumentalização institucional de entidades ligadas ao governo federal para fins políticos, as consequências legais podem ser graves, segundo alerta o próprio Judiciário.