O desafio da emergência climática e o agronegócio (por José Dirceu)
O Brasil tem uma pauta de medidas para enfrentar a emergência climática e terá que debater um assunto espinhoso: nosso modelo do agronegócio. Os mapas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do MapBiomas mostram que as áreas mais afetadas pelos incêndios coincidem com as regiões de expansão das fronteiras agrícolas para a produção de commodities, como a soja, ou para a formação de pastos para a criação de gado.
Como é mais barato usar o fogo como prática de manejo de pastagem ou de preparação do solo para plantio, parte dos donos de grandes fazendas em regiões de fronteiras agrícolas prefere correr o risco de provocar um incêndio do que pagar pelo desmatamento, que custa mais caro. Com a forte seca e o imponderável dos ventos, é fácil um foco de fogo sair do controle, quando não se trata de ação intencionalmente criminosa para atingir terras indígenas, quilombolas ou áreas de floresta ou outro bioma protegido do Estado.
No final de outubro, os focos de incêndio em todo o país, que atingiram seu pico nos meses de agosto e setembro, estavam controlados. Para fazer frente ao tamanho do desafio, o governo federal liberou um crédito extraordinário para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima de R$ 514 milhões e foram contratados 3 mil brigadistas que, somados aos 600 existentes mais 400 militares, totalizaram 4 mil. No combate ao fogo, os órgãos do governo federal atuaram em parceria com estados, que controlam o Corpo de Bombeiros, e municípios.
Mesmo assim, os dados dos biomas queimados são assustadores. De janeiro a 10 de outubro, a Amazônia viu o fogo comer 11,3 milhões de hectares de floresta, volume 196% superior a 2023. A floresta tropical está em fase de entropia, segundo o historiador Luiz Marques, professor livre-docente aposentado da Unicamp em entrevista a O Joio e O Trigo: morrem mais árvores do que nascem. No Pantanal, onde a situação é ainda mais grave, porque o bioma é menor – a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, diz que ele pode deixar de existir até 2050 –, foram queimados este ano, no mesmo período, 2,4 milhões de hectares. E, no Cerrado, 8,4 milhões de hectares.
O quadro seria muito mais grave se o governo Lula janeiro não tivesse iniciado a redução do nível de desmatamento, que disparou no governo Bolsonaro com o desmantelamento dos órgãos de fiscalização. No primeiro ano do 3o governo Lula, o desmatamento na Amazônia caiu 50% em relação a 2022 e, em 2024, até outubro, 45% em relação a 2023. Também houve queda no Pantanal e no Cerrado. Entre as medidas que estão sendo desenhadas pelo governo para enfrentar a emergência climática está a revisão, pelo Ministério da Justiça, das punições às pessoas envolvidas em incêndios criminosos, para torná-las mais severas. Na força-tarefa que está sendo realizada este ano para identificar e punir os autores de incêndios criminosos, a Polícia Federal já abriu mais de cem inquéritos em todo o país. Até meados de outubro, 26 pessoas tinham sido presas.
Governança
As demais medidas são quase todas elas relacionadas à melhoria da governança. Envolvem o Plano Clima, com medidas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas; nova meta de redução dos gases de efeito estufa (NDC); a Estratégia Nacional de Enfrentamento a Eventos Climáticos, com previsão de criação de um Conselho Nacional de Segurança Climática e um Comitê Técnico-Científico; e a recuperação de 12 milhões de hectares de áreas degradadas. Se é fundamental estabelecer uma governança adequada para que o planejamento seja implementado e funcione, também essencial é conscientizar a sociedade, de que a emergência climática não é uma moda, nem discurso de ambientalista. Se não for enfrentada com seriedade por todo mundo, não haverá futuro para nossas crianças e jovens. A situação é dramática.
A terra está esquentando em ritmo rápido. Nos últimos 11 mil anos, quando floresceu toda a civilização que se conhece, o clima variou pouco. Mesmo após a primeira revolução industrial, em 1850, quando o aumento da temperatura passa a ser relacionado à atividade humana, a variação não foi além de 0,6o Celsius para mais ou para menos. No entanto, a partir de 1970, relata o professor Luiz Marques, a temperatura começou a esquentar. Em 2022, a temperatura média global atingiu +1,15o C em relação a 1850. Se o ritmo de aquecimento projetado para os próximos anos se confirmar, a temperatura, por volta de 2040, poderá chegar a +2oC, clima que a Terra nunca experimentou nos seus últimos 2 milhões e 580 mil anos. E o que poderá acontecer? As hipóteses são muitas e nenhuma é promissora. O mais complicado é que a emergência climática, há muito anunciada, se torna emergência em um momento em que o sistema de governança mundial entrou em colapso. A ONU, que, por muitos anos, exerceu o papel de mediação, perdeu representatividade e, assim, poder de comando. Suas resoluções não são obedecidas. Resultado: por exemplo, as metas pactuadas de redução da emissão dos gases de efeito estufa (GEE), entre os quais o principal é o CO2, não só não foram cumpridas, como houve um aumento em nível mundial de 1% entre 2022 e 2023. É urgente que o Brasil busque, junto à comunidade internacional, um caminho para reconstruir, com urgência, uma efetiva governança mundial para encaminhar as questões da emergência climática que exigem decisões e plano de ação. Se queremos que haja esperança para a humanidade, não há tempo a perder.
Debate interno
Além de um plano de governança e outro de estratégia de emergência climática já em elaboração, o país tem que fazer estudos e um amplo debate sobre o modelo de desenvolvimento adotado para a agropecuária, baseado na monocultura em grandes áreas e na criação extensiva de gado. Ele é compatível com a emergência climática? Ele garante a preservação do que resta dos nossos biomas? Certamente, as respostas a essas perguntas, cruciais para o futuro não só do agro mas de todo a sociedade brasileira, dividem os especialistas. Ninguém nega a importância do agronegócio para a economia brasileira.
Em 2023, respondeu por 49% das exportações brasileiras (US$ 166,55 bilhões) e por 24% do PIB%, de acordo com a metodologia do Centro de Estudos Avançados em Economia (Cepea), da Esalq/USP, que inclui no cálculo, além da produção agropecuária básica, os insumos da atividade, a agroindústria (processamento) e os agrosserviços. Pela metodologia do IBGE, a participação do agro no PIB no mesmo ano foi de 7,3%, menos de 1/3.
Só que o Brasil, desde que abraçou o modelo econômico neoliberal, vem pagando um preço caro por ter optado, a exemplo de outros países da América Latina, pelo modelo exportador de especialização produtiva, baseado na exportação de produtos primários (minerais e produtos agropecuários) e produtos industriais com baixo valor adicionado. Sua indústria local, que floresceu a partir dos anos 1940, foi sendo desnacionalizada e desmontada três décadas depois, e os empregos migraram para o setor de serviços. Embora a taxa de desemprego venha caindo nos últimos dois anos, os salários pagos são de baixa produtividade em função da posição que o país ocupa na divisão internacional do trabalho.
Segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas – Ipea, em 1981 os empregos no Brasil estavam assim divididos: agricultura respondia por 48% das vagas; a indústria por 30%; serviços e comércio por 20%, e outros por 2%. Em 2023, levantamento feito pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial – IEDI, a partir de dados da PNAD/IBGE, o Brasil contava com 107,280 milhões de trabalhadores (37,7 milhões com carteira assinada). Do total geral, 9,5% trabalhavam na agricultura; 22% na indústria; e 68,5% no setor de serviços e comércio.
Além de não contribuir para melhorar a posição brasileira na divisão internacional do trabalho – a maioria dos empregos gerados pelo agronegócio são de baixa produtividade –, a expansão das fronteiras agrícolas é uma ameaça permanente à emergência climática em função de seu modelo baseado na monocultura extensiva, segundo muitas pesquisas. Não há como o Brasil enfrentar a emergência climática sem discutir o futuro do agronegócio, sem limitar de imediato as fronteiras agrícolas. José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo.