O que todo cidadão quer no momento da doença é atendimento médico. Para conseguir a assistência, muito passam por uma peregrinação dos municípios onde moram até as grandes cidades. O movimento é inverso ao que prevê o Sistema Único de Saúde (SUS) ao estabelecer que o serviço deve ser oferecido para todos, independentemente de onde moram ou de outras distinções sociais.
A qualidade do serviço tende a ficar comprometida nesse jogo em que o usuário é o integrante mais fraco de um time em que cada um deveria cumprir seu papel para o funcionamento em sintonia. Nesse sentido, hospitais grandes, aqueles centralizados em cidades maiores deveriam cuidar de casos mais graves ou mais especializados. Numa escala decrescente, o atendimento para situações mais simples deveria ficar restrito a unidades de saúde municipais próximas ao local de residência das pessoas.
Um exemplo dessa dinâmica é o caso recente das gêmeas Valentina e Eloá, de dois anos. A irmãs siamesas de Morrinhos vieram para a capital com os pais encaminhadas pela regulação para início da preparação da cirurgia de separação que ocorreu na primeira quinzena de março. O procedimento realizado no Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (HECAD) faz jus ao perfil especializado do local, que prioriza atendimentos mais complexos.
Com o pequeno Davvy, de 10 anos de idade, um equívoco no diagnóstico complicou o estado de saúde e apressou a vinda para o Hecad. Ele começou a passar mal no dia 26 de fevereiro com vômitos e febre. A mãe Daiane Alves o levou para um posto de saúde de Petrolina, no interior goiano, onde foi informada que o garoto estava com dengue.
Goiânia sempre foi referência como centro de saúde. Na prática, a atração de pacientes para rede pública da capital reforça o ciclo pendular da população do interior porque as desigualdades se mantêm. Questões orçamentárias e logísticas interferem na oferta de assistência médica e hospitalar próximo a casa dessas pessoas. O resultado é mais sofrimento e desgaste com o transporte, alimentação, falta no trabalho e comprometimento do orçamento familiar.
São essas falhas no fluxo de atendimento que causam cenas assustadoras de filas de pacientes e acompanhantes em hospitais centrais. “Um caso simples que poderia ser atendido em um pronto socorro municipal acaba chegando até nós. Não nos recusamos a receber até porque somos ‘porta aberta’, mas nosso perfil é outro. Somos especializados em atendimento pediátrico, somos um hospital de média e alta complexidade. Temos aqui 17 subespecialidades em Pediatria”, explica a diretora geral do Hecad, Mônica Costa.
A própria lei que cria o SUS ensina como as coisas deveriam funcionar: por meio da regionalização da saúde. Em Goiás, a pandemia acelerou o processo que, em resumo, leva ao interior mais hospitais e especialistas em diversas áreas. Nos últimos quatro anos, mais de dez unidades foram criadas em diversas regiões do estado para suprir essa carência, superando 30 na rede própria.
“Ele foi medicado, mas continuava com febre e dor no pé da barriga. O pai dele resolveu levar o menino para Nerópolis no dia seguinte. Fizeram exames e constataram que Davy estava com crise de apendicite e precisava ser operado com urgência. Eles encaminharam a gente para o Hecad e ele foi atendido aqui porque lá não faziam o procedimento. Tudo é excelente: os profissionais, o atendimento, a comida e ainda tem uma brinquedoteca que ajudou na recuperação do meu filho”, relembra Daiane.
Jataí, Formosa, São Luís de Montes Belos, Luziânia, Itumbiara e Uruaçu – com Hospital Estadual do Centro-Norte Goiano já têm grandes hospitais para assistir ao povo local e em breve será a vez dos goianos no entorno de Brasília receberem o Hospital Estadual de Águas Lindas de Goiás.
Na capital, os goianienses e as pessoas da região metropolitana não foram esquecidos. O Hecad e o Hospital Estadual da Mulher (Hemu), desmembrados do antigo Hospital Materno Infantil, ampliaram a oferta de vagas de serviço especializado. Em três meses de atuação, o Hecad contabiliza 11 mil atendimentos em consulta urgência e internação e quase 20 mil exames.
“Nosso atendimento ainda se concentra na população de Goiânia, mas atendemos pessoas de todo o estado encaminhadas pela regulação estadual que já vêm com perfil determinado para nossa unidade e vaga garantida. Isso é muito importante porque a lógica da regionalização e da descentralização favorece a prestação de serviço em saúde no interior, aumenta o número de leitos disponíveis no estado e perto da casa das pessoas, além de desafogar os centros de referência”, detalha Mônica.
A pandemia trouxe muita dor para famílias do mundo inteiro. A sobrecarga de pacientes com uma doença até então desconhecida pela medicina exigiu medidas drásticas e imediatas para assistir os doentes. A estrutura da rede de saúde, no entanto, não comportava a demanda e foi necessário ampliar o serviço. Dois anos depois, parte do legado dos esforços para salvar milhares de vida em Goiás são mais leitos, mais unidades de saúde e mais profissionais na área da saúde.
O interior do estado passou a ter a infraestrutura almejada e necessária há anos pela população. Finalmente, após três décadas da implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), a cobertura para atendimentos básico, secundário e terciário se tornou uma realidade. Aldeneide Gonzaga vivenciou o antes e depois do serviço em São Luís dos Montes Belos. Em julho do ano passado, ela ficou internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do hospital da cidade por complicações da covid-19 e chegou a ser intubada. Hoje, reflete sobre como seria se tivesse de ter sido encaminhada pra Goiânia.
Para que houvesse leitos de UTI disponível na região, o sistema estadual de saúde imprimiu dinheiro e estratégia na aplicação dos recursos. O combate ao coronavírus no estado custou mais de R$ 1,3 bilhão aos cofres públicos. Esse montante foi aplicado em diversas frentes e uma delas foi a construção de hospitais de campanha de alvenaria, ou seja, estruturas fixas que continuam funcionando agora numa fase bem menos crítica da pandemia.
Os prédios começaram a ser estadualizados ou cedidos ao governo de Goiás e passaram a integrar o projeto de gestão em saúde regionalizada com a especificação de seus perfis assistenciais para atender as necessidades das regiões onde estão localizadas, inclusive com leitos de UTI. Essa organização diferenciada não se trata de um capricho ou mera burocracia que trava a dinâmica do fluxo de atendimento. É o que garante a especialista em gestão, qualidade e auditoria em saúde, informa Caroline Marinho.
“Por exemplo: um hospital grande com fluxo de pacientes por dia sendo 20% fora do perfil da unidade representa gasto com profissional e material. Esses recursos poderiam ter sido usados para atender quem se encaixa nas características daquele local, agilizar o atendimento ou mesmo para reestruturação ou aquisição de equipamentos necessários. Quando isso funciona, diminui o fluxo de pacientes do interior na capital para receber atendimento, reduz a probabilidade de piora no quadro de saúde, a assistência regionalizada é fortalecida, a qualidade melhora e o paciente fica satisfeito”, explica.
O diretor médico do Hospital Estadual de São Luís de Montes Belos, José Silvério, foi um dos responsáveis pelo atendimento de Aldeneide. Ele afirma que, assim como ela, muitas pessoas tiveram mais chances de recuperação com a oferta de suporte intensivo durante a pandemia e agora, com a permanência do serviço para outras doenças, a população da região será beneficiada. Na transformação do antigo hospital municipal em estadual foram criados dez leitos de UTI que, desde o final do ano passado, recebem pacientes com cardiopatias, enfisema pulmonar, vítimas de acidente de trânsito e outros.
“Ajudou muito a gente porque num passado não tão distante, nós tínhamos que encaminhar os pacientes para a capital, Anápolis e Aparecida, ou seja, a mais de 120 quilômetros de distância. Temos agora um hospital e UTI completos com 52 leitos de enfermaria, 10 de UTI e 2 de estabilização. Temos também tomógrafo computadorizado, equipe de radiologia, raio x, ultrassonografia, laboratório e equipes médicas especializadas com ginecologista e obstetrícia, ortopedista e cirurgião 24 horas por dia”, detalha José Silvério.
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Reportagens especiais publicadas em março de 2022