‘Lente de aumento’: PM não entregou vídeos de quase 500 abordagens solicitados
pela Justiça do RJ, aponta levantamento
Em um dos processos que ficou sem a imagem gravada pela câmera corporal do
policial envolvido, um técnico em eletrônica acabou preso por mais de 4 meses
por suspeita de tráfico de drogas. O homem foi inocentado.
DE não entregou vídeos de quase 500 abordagens solicitados pela Justiça do RJ,
aponta levantamento
O Estado do Rio de Janeiro investiu R$ 162 milhões para equipar a Polícia Militar com câmeras corporais. Desde 2022, todo PM é obrigado a usar o equipamento. Contudo, apesar de gravar o dia a dia da tropa, nem todas as imagens feitas são
enviadas para a Justiça quando solicitadas.
No 3º capítulo da série “Lente de aumento”, a Globonews e o RJ2 mostram que pelo
menos 473 processos com pedidos para envio das gravações não receberam as
imagens feitas pelas câmeras corporais dos policiais do Rio de Janeiro. Em quase
200 casos, a PM admitiu que os arquivos foram apagados.
Para Joana Monteiro, professora de política pública na FGV, o material produzido
pelas câmeras deveria ser de fácil acesso da população, principalmente para os
órgãos de Justiça.
> “A gente tem imposto sendo pago para gerar essas imagens. Então, ela deveria
> ser de consumo de todos os órgãos de Justiça e Segurança Pública que, por lei,
> têm acesso a eles”, comentou a professora.
O coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do
Rio, André Castro, explicou que o estado conta com 13 mil câmeras gravando as
imagens 24 horas por dia e que a Defensoria Pública requisita apenas uma pequena
parte desse material.
> “Seria importante que as instituições de modo geral, e isso envolve não só a
> Polícia Militar, mas também as instituições do sistema de Justiça,
> desenvolvessem mecanismos para que a análise desses vídeos pudesse ser
> otimizada e ampliar a sua quantidade de exames”, comentou Castro.
INOCENTE PRESO POR 4 MESES
Na prática, a falta do envio do material gravado pelos policiais pode provocar
decisões injustas. Esse pode ter sido o caso do técnico em eletrônica, que não
vai ter sua identidade revelada. O trabalhador acabou preso por mais de 4 meses
por suspeita de tráfico de drogas. Ele foi inocentado ao fim do processo.
Segundo o relato do técnico em eletrônica, policiais o abordaram momentos depois
dele atender um morador do bairro Cotiara, em Barra Mansa. Ele foi
acusado de integrar o tráfico de drogas local.
O policial envolvido na prisão do trabalhador contou sua versão ao promotor
responsável pelo caso:
“Nós viemos através de mata. A outra equipe veio através da viatura por frente.
No momento que a gente se aproximou da parte alta pôde ver o nacional saindo de
uma área de mata. Momento esse aí ele tentou sair, mas ficou parado. Aí onde ele
desceu com as mãos já pro alto”, relatou o PM.
Mais sobre a série:
– Série mostra abusos e riscos de ações de PMs a partir de câmeras corporais
– Câmera corporal filma ataque a PMs no Jacarezinho; ‘Tomei na perna!’
– PMs obstruem câmeras corporais em abordagens, e suspeitos acabam absolvidos
por falta de provas
Ainda de cordo com o trabalhador, ele prestou um serviço em uma casa há 500
metros do local onde foi preso.
“Eu já tinha saído, uns 500 metros da residência dele, quando fui abordado pelos
policiais, que me perguntaram o que é eu tava fazendo ali. Falei: ‘Então, eu to
com minha mochila nas costas, to dizendo pra vocês que eu tava fazendo um
orçamento de câmera’. E dali pra lá eu não consegui falar mais nada. Juntou um
monte de policial em cima de mim: cadê a casa? cadê a casa? cadê a casa?”,contou.
O trabalhador rapidamente identificou que os policiais utilizavam câmeras
corporais, o que poderia ser um ponto a seu favor.
Durante buscas na comunidade, os PMs encontraram uma submetralhadora do
exército, um revólver, munição e drogas. Tudo foi encontrado na casa visitada
momentos antes pelo técnico em eletrônica.
Em depoimento, ele disse que não viu o armamento e que não conhecia o dono da
residência.
As imagens gravadas pelos PMs naquela noite nunca apareceram. Depois de ser
intimada pela Justiça, a Corregedoria da Corporação admitiu que os policiais não
classificaram os arquivos como evidência e os vídeos foram apagados do sistema.
Pela lei, toda vez que a ação policial termina com prisões, apreensões ou
mortes, o vídeo precisa ficar armazenado por um ano. Essa regra não foi
respeitada nesse caso.
> “O que passou pela minha cabeça foi talvez não ver mais meus filhos. Eu tinha
> um filho de três meses e uma filha de oito anos que ficou quatro meses, 20
> dias e 17 horas sem ver o seu pai por um erro da Justiça.
“Existia a prova de que eu não fiz pelas câmeras, mas não foi apresentado. É um
equipamento que existia, que poderia ter tirado qualquer sombra de dúvida sobre
mim, mas esse equipamento não foi utilizado”, disse o trabalhador.