A Justiça paulista negou a concessão de uma liminar para obrigar a Universidade de São Paulo (USP) a realizar suas comissões de heteroidentificação de forma presencial, em vez de utilizar videochamadas, como estabelece uma resolução anunciada pela instituição em julho deste ano. O papel dessas comissões é verificar se estudantes aprovados para vagas reservadas a pretos, pardos e indígenas (cotas PPI) possuem características e traços condizentes com os critérios de elegibilidade para tais vagas, de forma a evitar fraudes no sistema de cotas raciais. A decisão, publicada nesta quinta-feira (19), é uma resposta ao pedido feito pela Defensoria Pública do estado, que se coloca contra a avaliação feita à distância, em formato virtual. Segundo o órgão: A presença física dos candidatos evita alterações na aparência por meio de maquiagem ou recursos tecnológicos; A interação presencial com o candidato fornece à comissão um contexto maior para análise, o que o órgão considera importante, especialmente no caso dos estudantes pardos; A heteroidentificação por videoconferência pode comprometer o resultado da política de cotas e alimentar o discurso de grupos contrários às ações afirmativas, que se utilizam de falhas pontuais para questionar a validade do sistema de inclusão.
No entendimento da juíza Gilsa Elena Rios, não há elementos jurídicos que possibilitem a concessão de medida liminar na fase atual do processo. A magistrada acredita que uma intervenção judicial precoce impactaria na gestão da vida acadêmica e na autonomia administrativa da universidade. Portanto, recomendou que a USP se manifeste e apresente seus argumentos para realização das bancas à distância. Questionada, a Defensoria afirmou que recorrerá às instâncias superiores em janeiro, após o recesso do poder Judiciário, que começa nesta sexta (20). A DE também questionou a universidade sobre a decisão e aguarda retorno.
Os estudantes fazem a autodeclaração no momento em que se inscrevem para as provas de acesso à universidade, seja Fuvest, Enem ou Provão Paulista. Uma vez aprovados, eles passam pela primeira etapa de averiguação das bancas de heteroidentificação, que é a análise fotográfica dos candidatos. Os reprovados nessa fase são convocados para reuniões. Até o último ano, somente aqueles que ingressam pela Fuvest tinham direito a uma conferência presencial, os demais deveriam participar de oitivas virtuais. Contudo, o uso de métodos diferentes para avaliação causou problemas, então, a USP definiu que, a partir do vestibular 2025, todas as bancas de heteroidentificação serão realizadas no formato virtual.
A resolução em vigor estabelece que, caso um estudante discorde da avaliação da banca, que é baseada apenas na aparência física do candidato, ele pode apresentar um recurso ao Conselho de Inclusão e Pertencimento da universidade, para que novas avaliações online sejam realizadas. No início deste ano, estudantes aprovados na USP por meio de cotas raciais precisaram recorrer à Justiça para garantir suas vagas, após não serem considerados pardos pela comissão da universidade. O jovem de Cerqueira César (SP) foi aprovado pelo Provão Paulista no curso de medicina da USP, mas perdeu a matrícula. No caso do jovem Alison dos Santos Rodrigues, do município de Cerqueira César, uma decisão liminar de abril garantiu que ele conseguisse frequentar as aulas do curso de Medicina já no primeiro semestre do ano. Contudo, foi apenas em setembro que a Justiça determinou a efetivação de sua matrícula, que, até então, era provisória.
Conforme já divulgado pelo DE em outras ocasiões, especialistas afirmam que as câmeras tendem a embranquecer pessoas negras, já que foram feitas com tecnologias que tendem a reconhecer melhor escalas de cores brancas e, consequentemente, pessoas de peles claras. “Os manuais das bancas de heteroidentificação não recomendam entrevista em vídeo, é sempre recomendado que seja presencial, justamente sabendo dessas questões tecnológicas. As câmeras – principalmente no celular – não simulam de forma equivalente a cor da realidade”, diz José Vitor, advogado especialista em direitos digitais. “Se levarmos em consideração a câmera de um celular, eles tendem a conseguir reconhecer melhor uma pele branca. Uma pessoa negra retinta tira uma selfie e fica com uma cor cinzenta, por exemplo. Mesmo em câmeras analógicas, a escala de cor foi feita com uma referência europeia, de modo que você tirava fotos de pessoas negras e elas ficavam apagadas porque a iluminação não compreendia a escala de cores de peles negras. Isso foi se perpetuando na era digital por causa dos filtros”, explica.