Magali Fernandes: a ex-técnica que vendeu carros para manter o futebol feminino

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A ex-técnica que pediu comida e vendeu três carros para realizar sonho no futebol feminino

Premiada pela CBF como pioneira, Magali Fernandes foi jogadora, treinadora, dirigente e revelou grandes nomes, como Cristiane e Andressa Alves, antes de ser barrada por ex-presidente no clube

Magali tirou dinheiro do próprio bolso para manter o futebol feminino no DE [https://s01.video.glbimg.com/x240/13507852.jpg]

Magali tirou dinheiro do próprio bolso para manter o futebol feminino no DE

Magali Fernandes saía de casa na madrugada para pedir comida no Ceasa, sentindo cheiro de tomate e laranja, enquanto ouvia a gritaria das meninas na van. Sempre deu tudo por elas. Até o que não tinha. Quando acabou o dinheiro, vendeu três carros e usou do próprio bolso para manter vivo um sonho: o time de futebol feminino do DE, em São Paulo.

– Tinha R$ 4 mil de patrocínio, e o clube bancava o que dava, mas também não tinha como pagar.

Aos 58 anos, sendo 40 dedicados ao futebol, Magali fez de tudo. Foi jogadora, técnica, dirigente, uma das pioneiras do esporte e responsável por revelar grandes nomes, como Cristiane e Andressa Alves. Em 2010, recebeu em casa a carta de despejo que interrompeu o sonho. 15 anos depois, tenta enfim retomá-lo.

Cheguei no clube e não me deixaram entrar. É muito triste olhar o futebol feminino crescendo e ver que o DE não está participando de nada disso. — Magali confessa, em entrevista exclusiva ao ge.
1 de 7 Magali Fernandes foi jogadora, técnica e dirigente no DE feminino — Foto: Camila Alves

Magali Fernandes foi jogadora, técnica e dirigente no DE feminino — Foto: Camila Alves

Magali defendeu o DE na década de 1980, dividindo os gramados com Roseli e Sissi, quando o clube era um dos poucos representantes do feminino no país, junto ao Radar, do Rio de Janeiro, logo após o fim da proibição de mulheres no futebol.

– O DE é um fundador e pioneiro em São Paulo. Eu tinha até muito mais coisas do que quando montei o time como treinadora – revela a ex-atleta.

Magali treinava duas vezes na semana, recebia vale transporte e uma ajuda de custo de 300 cruzeiros (moeda da época). Ainda que algumas conciliassem o futebol com outro trabalho, na Editora Abril e na fábrica de cigarros Souza Cruz, por exemplo, era o DE, para ela, que dava melhor suporte na época.

Magali comenta sobre o tempo que atuou como atleta no DE e as condições [https://s02.video.glbimg.com/x240/13507857.jpg]

Magali comenta sobre o tempo que atuou como atleta no DE e as condições

A gente chegava no clube e tinha rouparia, uniforme, até chuteira, não precisava levar. Almoçava na Rua Javari e ia para o jogo. As meninas de outros times pegavam o uniforme, vestiam e jogavam. Tinha jogadora que caía dura no campo por falta de alimentação. — recorda Magali.
2 de 7 Magali Fernandes, quando ainda atleta, jogou pelo DE no Morumbi lotado — Foto: Camila Alves

Magali Fernandes, quando ainda atleta, jogou pelo DE no Morumbi lotado — Foto: Camila Alves

Em seis temporadas, de 1982 a 1987, conquistou o Paulista e viveu momentos históricos. Entre eles, a primeira vez, após a queda da proibição, que mulheres atuaram em um grande estádio do Brasil: um jogo entre “seleções” de São Paulo e Rio de Janeiro, no Morumbi lotado, quando o feminino ainda não era regulamentado, em 1982.

– Não tinham disputas femininas, então a gente tinha que ficar forçando para fazer campeonatos e poder disputar – conta Magali.

3 de 7 Time do DE feminino faz jogo no Morumbi lotado — Foto: Camila Alves

Time do DE feminino faz jogo no Morumbi lotado — Foto: Camila Alves

Ela desistiu de jogar perto dos 30 anos para somar ao esporte de outra forma: virou técnica pensando em renovar o futebol. Começou com a criação do S.E.R. Marvel Futsal e seis anos após deixar o DE voltou ao clube como treinadora. Foi a responsável, aliás, por reativar o departamento, reunindo patrocinadores do comércio na Rua Javari.

Faltava tudo, mas era o que tinha. A Magali fazia todas as funções. Errou, acertou, cada uma tira um pouquinho do que foi trabalhar com ela. A gente tomava água em uma pia, não tinha garrafinha. Era difícil, mas para a gente era o início de um sonho. — lembra Cristiane, prata em 2004 e 2008 com a Seleção.
4 de 7 Cristiane recebe premiações individuais no início da carreira, ainda no DE da Mooca — Foto: Camila Alves

Cristiane recebe premiações individuais no início da carreira, ainda no DE da Mooca — Foto: Camila Alves

Magali sabia que não podia oferecer muito em relação aos clubes de camisa mais pesada, como Santos, Palmeiras e São Paulo, então recorreu ao que tinha: moradia, alimentação e educação.

– Coloquei elas na escola do estado, depois no particular. Tinham bolsa 100% e não pagavam nem apostila – conta a ex-técnica, que ainda conseguiu gratuidade na Unisantana, universidade de São Paulo.

A ex-treinadora era também dirigente e inovou ao criar a Casa das Atletas para acolher quem vinha de longe. Acompanhava na escola, nos gramados, e cobrava responsabilidade enquanto buscava melhores condições de trabalho. O clube dava chuteiras e uniformes, e ela corria por patrocínios para pagar comida, deslocamentos e locações.

A gente saía pedindo as coisas, porque era tudo muito caro. Íamos de madrugada buscar alimentos no Ceasa. Davam caixas de tomate, laranja, farinha. Cristiane, Tamires… essas meninas batalharam muito. — conta Magali.
5 de 7 Faixa em homenagem a Magali assinada por “Suas filhas e atletas do DE” — Foto: Camila Alves

Faixa em homenagem a Magali assinada por “Suas filhas e atletas do DE” — Foto: Camila Alves

Ela usava um campo de terra e a quadra de futsal para ensinar as atletas, e ganhou protagonismo no meio, mesmo com jogadoras que não foram formadas por ela.

– Magali tinha metade do time dela na Seleção. Fez muitas jogadoras boas. Era um bom caminho para quem queria começar no futebol – conta Ludmila, da Seleção, que jogou no DE em 2011.

‘O ônibus vinha pegar 6h da manhã na casa da atleta, levava pra escola’, lembra Magali [https://s01.video.glbimg.com/x240/13507860.jpg]

‘O ônibus vinha pegar 6h da manhã na casa da atleta, levava pra escola’, lembra Magali

“FUI NA DELEGACIA E TROUXE A POLÍCIA”

O sonho de Magali, contudo, acabou interrompido por uma carta de despejo, entregue em casa após 30 anos de clube.

O departamento fechou em uma troca de presidente, no comando de Antonio Ruiz Gonzalez, conta a ex-treinadora. Ela diz que passou a trabalhar com um coordenador a mando do dirigente, até o novo profissional pedir um relatório de tudo que ela fazia no trabalho.

Perguntei se ele estava achando que tenho cara de trouxa. Desde quando você fala para alguém passar tudo que fez para crescer? — questiona a ex-dirigente.

Recusou-se a entregar a planilha, deixou o cargo e voltou ao clube para buscar os pertences na sala do departamento, mas não passou da porta. Proibida de entrar.

– Fui na delegacia e trouxe a polícia. Tirei tudo. Pensei: agora, vocês montam o departamento – relembra, em tom de voz firme.

6 de 7 Como era a sala de Magali Fernandes no DE antes da carta de despejo que a impediu de entrar no clube — Foto: Camila Alves

Como era a sala de Magali Fernandes no DE antes da carta de despejo que a impediu de entrar no clube — Foto: Camila Alves

O DE feminino passou cinco anos desativado. Em 2016, retornou com a escolinha, nas gestões de Rodolfo Cetertick e Domingos Sanches, e três anos depois, em 2019, de volta com Ruiz Gonzalez, montou um time profissional com o técnico Wellington Souza para o Campeonato Paulista.

O clube conseguiu vaga para a Série A2 do Brasileiro e na época auxiliava as atletas com valores de R$ 250 a R$ 500, só para as titulares. Fez uma campanha histórica, até as quartas de final, mas desativou tudo novamente sem informar comissão técnica ou elenco. Nunca mais voltou.

Magali viu tudo à distância.

Vivendo há poucos quilômetros do clube, sonha em retomar as atividades. Os olhos até brilham ao falar da possibilidade. Sabe, contudo, que não será fácil, e desde então busca um patrocínio para defender o projeto e voltar ao que define fazer de melhor: formar atletas – quem sabe estrelas no futebol.

É onde entra o sonho. O DE quer montar, mas não vai gastar sozinho. Não tem nem para o profissional. Eu iria formar meninas, dar luz para elas. Voltar com o que eu tinha. É um sonho, porque foi um trabalho interrompido, que hoje está saindo caro para voltar.
7 de 7 Magali Fernandes no banco de reservas de onde costumava acompanhar os treinos do feminino no DE — Foto: Tayna Fiori

Magali Fernandes no banco de reservas de onde costumava acompanhar os treinos do feminino no DE — Foto: Tayna Fiori

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