O ‘roubo’ que mudou a história de Belém e da Amazônia — e suas lições para a cidade da COP30
Como um carregamento secreto de seringueiras partindo da capital do Pará para Londres levou à decadência da região no passado e quais lições os altos e baixos do ciclo da borracha deixam para a cidade que recebe DE
Série especial de vídeos verticais do de explica tudo de mais importante sobre a COP30, em Belém
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O ano era 1876 e o local era o porto de Belém do Pará. O inglês Henry Wickham, a bordo do transatlântico SS Amazonas, estava nervoso. Um atraso poderia arruinar a carga valiosa e perecível que ele carregava no porão: 70 mil sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira.
Às autoridades portuárias paraenses, ele declarou que dentro das caixas havia “amostras botânicas extremamente delicadas” destinadas ao Jardim Botânico Real de Kew Gardens, de propriedade de “Sua Majestade Britânica”, a rainha Vitória, em Londres.
> “Na minha mente, eu tinha toda a certeza de que se as autoridades descobrissem o objetivo do que eu tinha a bordo, seríamos detidos sob a alegação de que necessitavam de instruções do governo central do Rio, se é que não seríamos interditados”, escreveu Wickham nas suas memórias.
Liberado para cruzar o Atlântico, numa viagem “calma e azul”, o inglês deixava para trás uma cidade em obras que estava se transformando em uma das mais modernas e pujantes das Américas, mas não por muito tempo.
Como a elite de Belém iria descobrir algumas décadas mais tarde, o objetivo encoberto pelo inglês era puramente econômico: estabelecer uma indústria de cultivo de seringueiras, então exclusivas da Amazônia, do outro lado do mundo, nas colônias britânicas na Ásia.
E ele foi cumprido.
Hoje, ainda há uma seringueira plantada no Kew Gardens, em Londres
Naqueles anos, a industrialização nos países da Europa e nos EUA crescia a um ritmo rápido, e a demanda pela poderosa borracha encontrada no Brasil, que passou a ser usada em pneus e máquinas, explodia.
“Na década de 1860, você chega a uma situação em que o preço da borracha que chega aos portos de Londres é maior do que o da prata”, conta à BBC News Brasil Caroline Cornish, coordenadora de pesquisa em humanidades do Kew Gardens, em Londres, instituição da realeza que contratou os serviços de Wickham.
As potências imperiais perceberam que, se quisessem expandir suas indústrias a um preço acessível, teriam que assumir o controle de seu próprio suprimento de borracha. Então foi isso que motivou todo o projeto de tirar sementes do Brasil e replantá-las, no nosso caso, em territórios britânicos no Sudeste Asiático.
No Jardim Botânico de Londres, apenas 2,6 mil das sementes levadas por Wickham germinaram, e foi o suficiente para serem transplantadas a países como Singapura, Malásia e Sri Lanka, onde se adaptaram com sucesso.
As vantagens dos seringais asiáticos criados pelos ingleses em relação aos brasileiros eram enormes. No Brasil, muitas seringueiras eram acessíveis somente por via fluvial, com meses de viagem entre o local de extração do látex e o destino final.
As seringueiras também estavam espalhadas pela floresta, não concentradas em um só lugar.
Na década de 1910, diante da nova concorrência concretizada, a economia amazônica, que vinha se baseando quase exclusivamente na exploração da borracha, ruiu.
“Essa economia se revela, na verdade, desde muito cedo, uma economia muito frágil, muito dependente de uma única commoditie e dos preços do mercado internacional”, explica Nelson Sanjad, especialista no ciclo da borracha no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.
Belém era o porto por onde saía a borracha da Amazônia em direção à Europa — Foto: Vitor Serrano/BBC News
A travessia de Wickham da Amazônia à Europa naquele ano, portanto, marcou o início do fim do que foi chamado de “ciclo da borracha”, o auge da economia da região entre o fim do século 19 e início do século 20.
Era também o início de uma decadência de cidades como Manaus e Belém, transformadas durantes décadas em centros de riqueza, de arquitetura europeia e pioneiras em reformas urbanas, como a implantação de sistemas de iluminação elétrica.
Para os milhares de brasileiros que haviam se mudado para as periferias amazônicas, atraídos pela fascinação quase mítica da borracha, restou a floresta que o mundo pela primeira vez dava as costas.
Agora, sede da Conferência da ONU sobre Mudança Climática, a COP30, Belém traz os olhos do mundo de volta para a floresta. Dessa vez, para enxergar nela não o que se pode extrair, mas o que se pode preservar.
A BBC News Brasil mergulhou nessa história (veja também em vídeo) e ouviu dos especialistas os aprendizados – sobre biodiversidade, desenvolvimento e desigualdade – que os altos e baixos do ciclo da borracha podem trazer para vida atual de Belém e da floresta.
WICKHAM, LADRÃO?
A colheita das sementes de seringueiras na região do rio Tapajós, no oeste do Pará, e a passagem por Belém são descritas pelo próprio Wickham como uma “farsa” montada e um “contrabando”, como relata o escritor Joe Jackson no livro O ladrão do fim do mundo (Editora Objetiva).
Mas, para o pesquisador Nelson Sanjad, do Museu Paraense Emílio Goeldi, parte dessa narrativa foi usada pelo próprio Wickham para dar contorno de heroísmo à sua história.
Pelos serviços prestados à coroa britânica, ele chega a receber o título de cavaleiro da Ordem do Império Britânico, tornando-se “Sir”, em 1920.
Mas o que de Wickham de fato fez, segundo Sanjad, foi completar um processo que muitos exploradores europeus tentavam concluir naquele momento: levar as seringueiras para fora do Brasil.
Henry Wickham foi visto como herói no Reino Unido — Foto: AFP via Getty Images
“Ele é a pessoa que teve talvez as condições apropriadas, no momento certo, para fazer essas coletas, o trabalho de reprodução no jardim botânico e a organização da produção em larga escala no mundo colonial europeu”, diz o pesquisador.
Além do inglês, os franceses e holandeses tentaram realizar o mesmo processo com plantações no Vietnã e na Indonésia, respectivamente, mas sem o sucesso britânico.
“Agora é um fato que ele se torna o ícone, o símbolo da falência dessa economia da Amazônia”, completa Sanjad.
Contatado pelo Kew Gardens, Wickham já vivia na Amazônia, na região de Santarém (PA), com vínculos com os chamados federados, americanos fugidos da guerra civil no Sul dos Estados Unidos.
“Ele certamente conhecia bem a terra, as pessoas e consegue reunir as 70 mil sementes em questão de poucos dias”, relata a pesquisadora Caroline Cornish, do Kew Gardens.
Apesar de a coleta das sementes e a transferência para Londres ser descrita como “roubo” e um dos primeiros casos de “biopirataria”, os termos também são alvo de debate.
“Se você está apenas olhando para a estrutura legal na época, não havia uma lei sobre a exportação de sementes de borracha do Brasil. Então, não era tecnicamente ilegal, mas obviamente também não era completamente ético”, diz Cornish, em Londres.
Em Belém, Nelson Sanjad reforça que não havia uma legislação que apontasse uma ilegalidade da ação naquela época e que, portanto, não deve ter sido difícil para Wickham sair do Brasil com o navio cheio.
“Eu creio que considerar isso biopirataria ou tráfico seja um anacronismo”, avalia. Isso é, avaliar um fato do passado com as lentes de hoje.
“Nós temos notícias de naturalistas que entram na Amazônia e levam milhares de plantas, animais e artefatos indígenas. Essa é uma prática comum no século 19, uma prática colonial de apropriação.”
“Acho que o mais importante de tudo isso não é julgar e condenar, mas tentar entender essas formas de controle, de produção, de colonialismo, que estão em jogo nesse momento, no século 21, para que isso não se perpetue”, conclui Sanjad.
Representando o Kew Gardens, Caroline Cornish diz que o jardim botânico de Londres “reconhece que o colonialismo foi um processo extrativista, que foi um dos muitos atores envolvidos nesse movimento e em todas as consequências ambientais, humanas e econômicas”.
DAS BOLAS INDÍGENAS AOS PNEUS MICHELIN
Seja para impermeabilizar objetos ou para a fabricação de bolas usadas em brincadeiras, os povos indígenas da Amazônia já usavam o látex séculos antes dos primeiros contatos com os europeus.
Em 1730, acontece um marco importante do conhecimento do látex no outro lado do mundo, com a viagem do explorador francês Charlie Marie de La Condamine.
Bola de látex feita por indígenas da Amazônia e as sementes de seringueira — Foto: Getty images
Em expedição pelo rio Amazonas, ele convive com indígenas Omágua e começa a escrever sobre a borracha utilizada por aquele povo. Os relatos logo se espalham pela Europa.
No Brasil, os portugueses começam a aplicá-la na impermeabilização de calçados, com evidências documentais mostrando existência de fábricas de botas e sapatos em Belém que exportavam para Europa desde o final do século 18.
Mas havia um problema: a borracha, até então, era um material inconsistente, sem estabilidade. No excesso do calor, ela ficava pegajosa; no excesso de frio, quebradiça.
Isso muda em 1839, quando o inventor americano Charles Goodyear cria um processo chamado vulcanização,
Ele consistia em misturar a borracha com enxofre e aquecê-la, para que ela ficasse mais resistente, durável e elástica.
A partir daí, várias novas tecnologias, produtos e aplicações começaram a surgir, como o pneu de automóvel, inventado pelos irmãos Michelin em 1845
“A borracha é a matéria-prima que propicia uma segunda revolução industrial. A partir dela, vários instrumentos e objetos que eram fabricados antes com couro, começam a ser fabricados com a borracha, tendo uma aplicação praticamente infinita”, explica Nelson Sanjad.
O comércio da borracha passa a escalar mundialmente, impulsionada pela popularização da bicicleta e a chegada dos automóveis
Estava formado o chamado boom da economia da borracha amazônica.
Na segunda metade do século 19, a Amazônia dominava pelo menos 90% do mercado mundial da borracha. O restante vinha de outras árvores, menos produtivas que a seringueira brasileira.
Também nessa época, o governo brasileiro abre o rio Amazonas ao comércio internacional, permitindo a entrada de navegadores europeus.
“Eram muitos agentes coloniais oriundos de instituições científicas e empresas de exportadores em busca desse ouro negro, como era chamado a borracha nessa época”, conta Sanjad.
Rapidamente Belém foi do boom à decadência com a queda da borracha brasileira — Foto: Vitor Serrano/BBC News
Os europeus e os americanos estavam, na verdade, tentando criar alternativas ao fornecimento dessa borracha cada vez mais essencial – e não queriam ficar dependentes de um único país, o Brasil.
Enquanto eles não conseguiam fazer isso, as cidades da Amazônia se desenvolviam em torno da (frágil) economia da borracha. Primeiramente Belém, principal porto para saída ao Atlântico; e, depois, Manaus.
DE ‘PARIS N’ÁMERICA’ A BELÉM DAS BAIXADAS
Sede do porto de onde, num primeiro momento, saía toda a borracha em direção à Europa, Belém foi rapidamente se transformando de pequena capital restrita a uma atividade portuária a um centro urbano que replicava o que era considerado moderno naquela época. Ou seja: a Europa.
“Os governantes da época queriam mostrar que Belém era uma das capitais do mundo em termos de importância, de beleza e de riqueza”, conta Rebeca Ribeiro, diretora do Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Pará.
“Então, se queria que Belém fosse parecida com Paris e Londres.”
O maior símbolo dessa época na cidade é Theatro da Paz, na Praça da República. Inaugurado em 1878, ele foi inspirado no Teatro alla Scala, de Milão, na Itália.
Theatro da Paz é considerado o maior símbolo do ciclo da borracha em Belém — Foto: Vitor Serrano/BBC News
Além dos edifícios, também há a transformação de toda infraestrutura da cidade, como rede de esgoto, sistema de iluminação elétrica, transporte ferroviário e usinas para cremação de lixo. Novas avenidas largas, arborizadas e planejadas são construídas como boulervards parisienses.
O responsável para dar impulso às maiores reformas urbanas de Belém foi o intendente Antonio Lemos (o equivalente a prefeito naquela época), que chega ao poder em 1897.
“Nesse momento, ele vai desenvolver um novo código de posturas para a cidade”, explica a professora Celma Vidal, coordenadora do Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica da Universidade Federal do Pará (UFPA).
“Ele começa a dizer como as pessoas deveriam morar, como deveriam ser as casas, as diretrizes de como as pessoas deveriam agir no espaço público e até nos espaços privados, nas suas casas.”
BeIém ganhou avenidas inspiradas nos boulevards franceses — Foto: Arquivo/IBGE
Belém chegou a ser apelidada de Paris N’Ámerica e Manaus, que enriqueceria alguns anos mais tarde, a Paris dos Trópicos.
A capital paraense também se torna o primeiro centro financeiro da região, com instalação de bancos europeus que vão financiar as reformas urbanas e a própria economia da borracha.
Com tanto dinheiro circulando, o Norte se torna pela primeira vez o destino de uma imigração massiva dentro do Brasil.
Entre 1870 e 1900, 300 mil nordestinos teriam migrado para toda a Amazônia, segundo pesquisas, fugindo das secas.
Entre os Censos de 1890 e 1920, a população de Belém saltou de 50 mil para 236 mil habitantes, um crescimento de 370%, menor apenas que o de São Paulo, que vivia o auge da exploração de outra riqueza: o café.
Mas enquanto os donos de seringais e as empresas europeias que forneciam infraestrutura enriqueciam, boa parte dos migrantes acabava ficando sem trabalho – e sem dinheiro.
“O lucro fica nas mãos de poucas famílias que detêm as terras. Mas a riqueza mesmo produzida pela exportação do látex não fica na região amazônica. Ela é drenada pelas casas exportadoras e pelas instituições bancárias que forneciam crédito a preço muito caro”, conta pesquisador Nelson Sanjad.
Os milhares de migrantes que chegavam e não iam trabalhar diretamente nos seringais começaram, então, a povoar as margens de Belém.
“São os arrabaldes da cidade, as áreas mais baixas, que a gente chama desde então de baixadas. Havia




