O Sistema pegou o mito: Bolsonaro vive de alianças para manter governo de pé

Mitos são histórias que ficam na memória coletiva, embora as gerações futuras nunca tenham certeza da sua veracidade. “O mito da Caverna”, a “mitologia grega”, e tantos outros. Mas há outro mito na política brasileira (e não se trata do apelido do presidente) que começou antes mesmo da República: governar sem ser engolido pelo Sistema (aqui, com a letra maiúscula reservada às divindades).

Voltando a 2018, Jair Bolsonaro figurava como um candidato relativamente conhecido: alguns o seguiam há anos, enquanto outros se perguntavam… “mas quem é esse, afinal?”. Assim, o “mito” cresceu com a bandeira da política limpa, inédita, e sem conluios. E ganhou! Com inquestionável superioridade nas urnas, encima de um partido que não havia muito tempo, era dono do apelo popular.

O país, dividido pela linha do Equador, votou massivamente na imagem “antissistema” de Jair, o quase Messias que carregava até no nome o destino de livrar o Brasil de suas próprias garras viciosas. E no primeiro ano, contrariando a história, Bolsonaro parecia ser o primeiro caso de sucesso contra a corrente do Sistema brazuca: indicou quem quis para os ministérios e parecia gozar de liberdade absoluta sobre as alianças partidárias.

Até que um divisor de águas transformou tudo de novo em mito: como contou Paulo Guedes à “Veja”, um plano de impeachment foi preparado para tirar o dissidente de dentro do Planalto. Segundo o economista, “Tinha gente da Justiça, tinha Rodrigo Maia, tinha governadores envolvidos”. O Sistema de volta, inconformado com a perda de protagonismo.

Paulo, ocupado demais com o dinheiro que é sempre problema no Brasil, teve de parar, arregaçar as mangas e “segurar as pontas” para Bolsonaro. Daí, surgiu a primeira grande concessão: a cabeça do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, foi a primeira a rolar. Era isso, ou todo o Governo.

Em Goiás, um ditado pelas metades costuma dizer: “Uma vez que se abre a porteira…”. Embora ninguém já tenha terminado essa frase, o sentido essencial não está oculto, porque para bom entendedor… sim. Desde aquele junho de 2020, o Show de Truman está no ar: sorrisos com Maia, abraços com Toffoli, coraçõezinhos com Caiado.

Os eleitores do 17, que também têm seus apelidos por aí, tem raros momentos de êxtase onde parecem matar a saudade do presidente em que votaram. Às vezes, Bolsonaro tem tiques nervosos e Déjà Vus de 2018, voltando a ser o velho “desbocado do povão”. E o eleitorado vai à loucura: “Esse é o Bolsonaro raiz!”, eles dizem, arrebatados de encanto.

Mas Bolsonaro, que antes andava fora do tabuleiro, se conteve a jogar conforme as regras e sabe disso. O capitão joga xadrez enquanto come pastel no Planalto Central: move-se livre, nas poucas mexidas desenhadas que são possíveis. Se não for assim, sabe que a qualquer hora uma armadilha pode tirá-lo de cena: pode ser a rainha, pode ser o bispo, podem ser os cavalos e até as torres. E se for a combinação de todos juntos, Bolsonaro é só mais um peão, pronto para ser xotado fora da mesa.

Enquanto isso, o povo assiste ao jogo. Alguns dormem, outros roem as unhas. Neste primeiro de fevereiro, Bolsonaro parece fortalecido: ao que tudo indica, Câmara e Senado estarão ao seu lado. Mas a que preço? O que foi preciso sacrificar? Só ele poderia responder. No fim das contas, o que Jair tem de certo são os fiéis expectadores da partida de xadrez. Basta sair nas ruas, e ver o povo, persistente com seu Messias. E assim, com o tempo, os mitos vão se confirmando, geração após geração: “Era uma vez, um homem que resistiu ao Sistema…”

Imagem: Marcos Correa/PR

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A crise moral da nova geração de médicos

Médico com máscara.

Por: SARA ANDRADE

Uma jornalista jovem de classe média tem livre circulação nos ambientes frequentados por pessoas com histórias relativamente parecidas: vivendo dentro dos seus vinte anos, formando-se na faculdade e começando carreiras no mercado de trabalho. Nesta bolha, destaca-se a quantidade de moças e rapazes que optaram pelo estudo da medicina.

Estão aí para provar as estatísticas: de 2000 para 2020, o número destes profissionais no Brasil mais que dobrou, passando de 230 mil para meio milhão, segundo resultados do estudo “Demografia Médica no Brasil 2020”, liberado pelo Conselho Nacional de Medicina em parceria com a Universidade de São Paulo.

As milhares de entregas de canudo, tão comemoradas, foram responsáveis por alargar a média de médicos a cada mil habitantes no país: de 1,4 para 2,4, colocando o Brasil no mesmo patamar de nações como Japão ou Polônia, e apenas décimos atrás dos Estados Unidos, com média de 2,6. O que os números não podem mostrar, no entanto, são os pormenores deste fenômeno. Aqui vale o ponto de vista de uma jovem jornalista, e o cenário não é tão simples quanto parece.

A medicina sempre carregou consigo seu bocado de nobreza. Curar doenças, tirar a dor das pessoas, aumentar o tempo e a qualidade de vida: de fato, o jaleco branco pode ser uma espécie metafórica de batina, numa profissão quase sacerdotal, sagrada. Não seria falta de noção falar até em “amor ao próximo”. Muitos jovens estudantes parecem ter esta ideia romântica em mente: ajudar as pessoas através do trabalho de suas vidas. Não é só um emprego: torna-se missão e vocação.

Enquanto isso, outros estudantes de medicina parecem perdidos pelo caminho. Atenção: este é um questionamento aos que em breve serão médicos! Você está verdadeiramente preparado para abrir mão de si, dos seus desejos e caprichos, em prol de um desconhecido? Muitas vezes, seus pacientes serão “impacientes”, inoportunos e sem educação (até porque podem estar sob o efeito de grande dor).

Você pode não ser agradecido, nem reconhecido ou elogiado. Quem sabe até injustiçado. Pense consigo, você pode suportar? Você quer suportar? A sua escolha deve ser como em um casamento: o padre sempre avisa da riqueza e da pobreza, da saúde e da doença: quem diz sim, o diz para tudo.

Com o prestígio do ofício, vêm os abutres. Quantos não estão cursando medicina pelo status social, pelo dinheiro prometido, ou ainda apenas pela experiência da vida festeira de universitário? Tudo isso pode estar no pacote, caso o amor também se faça presente. Sem amor primeiro, é tudo vazio neste coração de doutor. Assim, a indagação martela nas mentes: como um universitário interesseiro e exibido, que nunca se doou a nada, nem a ninguém, pode ser um bom médico? De onde tirará o amor que tudo suporta, que persevera? Ninguém pode dar o que não tem.

Seria possível que um estudante qualquer de medicina, na condição de escravo de aprovação, de likes em redes sociais, incapaz de reconhecer o esforço da família para formá-lo, que só se importa em figurar bem para os amigos nos ambientes sociais… seria possível que disso saia altruísmo, doação e abnegação de si? Doar-se não é lá tão impossível e atos como arrumar a própria cama já são ótimos sinais de ordem interior. A disciplina, a sinceridade, a submissão aos superiores, tão necessárias no dia a dia do médico: tudo isso começa pequeno, mostrando-se no dia a dia do estudante.

Se você não sente obrigação nenhuma para com ninguém, se o mundo inteiro (seus amigos, pais) está sempre errado e você certo, ou se a culpa de seus fracassos, ou más ações, nunca é sua, pobre vítima… falta-te o principal para ser um bom médico: o amor. E este só vem com maturidade, com a compreensão de que sua vida não é para você se entupir de si mesmo, mas um presente ao mundo: ao tiozinho da esquina que sofre, à criança resfriada e à fofoqueira insuportável do bairro. Desse modo, seus dias ganharão um sentido maior.

Muitos reduzem o sucesso na vida ao sucesso profissional. Nada mais equivocado! Quantos não são fracassados com contas bancárias gordas? Isso acontece porque sucesso verdadeiro é ter personalidade, maturidade. E isso só se alcança com consciência moral, que diferencia bem e mal, e que gera noção de dever. Mas o que será de uma geração de jovens médicos que tem horror à própria ideia de moralidade? De ordem? Ou com uma dificuldade imensa de compreender a necessidade de regras, de ritos… Serão eles ricos? É possível. E também miseráveis, porque imaturos e sem personalidade. No fim, ninguém é feliz assim, ou cumpre seu chamado no mundo, sua vocação.

Aliás, o que levaria um jovem médico a doar-se por alguém? Sem sombra de dúvidas, a certeza da dignidade da vida humana, e o conhecimento da sua transcendência. Infelizmente, esta geração tem receio até mesmo de dizer que uma vida humana vale mais que a vida de um papagaio, ou de uma lesma. Como amar o humano, se não se sabe o que ele é, ou quanto vale? Ingênuo pensar que um estudante imaturo e incapaz de amar tornaria-se imediatamente amoroso e dedicado pelo toque mágico do diploma em suas mãos.

Essa dinâmica se aplica a todas as profissões, mas o médico deve ser o primeiro da fila a entender a vida. Porque muitas vezes, ela está em suas mãos. Um bom exemplo a guiar os novatos de consultório pode ser São Lucas. Médico, artista e historiador. Com uma vida inteira doada ao conhecimento da verdade humana. Que a paixão pela beleza da existência também inspire você a cada dia, jovem médico, e te leve ao amor maior. Especialmente neste dia 18, dia do médico e de São Lucas, padroeiro da honrosa missão de curar.

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