A vitória transformou-se em produto: o “torcedor-cliente” não está preparado para a frustração
A arquibancada é o único parâmetro: apenas quem senta na arquibancada pode reivindicar o passado, o presente e o futuro do seu clube.
Há alguns anos, um fenômeno curioso tem surgido no futebol brasileiro, especialmente entre torcedores de Flamengo e Palmeiras, os clubes que mais triunfam recentemente: trata-se da Síndrome do Vencedor Inconformado. Mesmo com seus times acumulando vitórias, após algumas derrotas seguidas ou uma eliminação dolorosa, uma parte da torcida age como se o mundo estivesse desmoronando, como se o passado, mesmo que muito recente, fosse apenas uma ilusão e somente um protesto enérgico pudesse corrigir uma situação que, na verdade, não necessita de correção.
Essa reação, um vício em busca da plena felicidade, uma espécie de acomodação com a vitória, está intimamente ligada a um fenômeno mais amplo personificado por um indivíduo que veste todas as cores: o torcedor-cliente.
Desde já, aviso que é um tipo bastante peculiar, daqueles que provavelmente lê a seção de economia antes da página de esportes. Celebra a renda anunciada no telão e pensa em ideias para tornar a arena do seu time mais lucrativa, como pista de kart, show do Coldplay, festival de balonismo, entre outras coisas.
Trata-se, principalmente, da pessoa que passou a enxergar o futebol e sua relação com o clube como uma transação comercial. Se estou pagando, seja em dinheiro ou em investimento afetivo (pois, nessa visão, tudo pode ser monetizado), é dever do clube me proporcionar um retorno positivo. A vitória tornou-se o produto ao qual tenho direito desde que assinei o contrato ao entrar no estádio. Minha felicidade é mensurada em uma planilha que precisa ser atualizada a cada domingo. Caso isso não aconteça, pondero em descontinuar meus investimentos. Minha tristeza, aviso aos dirigentes, não é uma opção.
Uma consequência direta dessa perspectiva é a iniciativa que vez ou outra surge entre diferentes torcidas diante de um momento difícil do time em campo: a campanha por PÚBLICO ZERO no estádio. Recentemente, essa tendência mercantilista idealizou grupos de torcedores de diversos clubes, como Internacional, Botafogo, Vasco, Guarani e Paysandu. Como o nome sugere, esses torcedores propõem que ninguém compareça aos jogos.
Mesmo que pareça uma visão motivada por profunda insatisfação, na realidade reflete uma espécie de bolsa de valores sentimental: a forma de cobrar o clube é similar a boicotar uma empresa. Como se fosse possível “reconvocar” o coração. Se encontrar uma falha no serviço, que seria o simbolismo de uma mosca no milk-shake de mirtilo, não retornarei. Assim, sem saber lidar com a frustração, esses torcedores transformam seu clube em uma lanchonete baseada na especulação afetiva.
Esse ponto de vista representa uma ruptura dramática na relação histórica entre o torcedor e suas cores: a derrota não é mais encarada como uma dor coletiva, mas como um fenômeno entre duas partes distintas. Minha presença necessariamente deve resultar em felicidade – eu inclusive pago por esse produto chamado felicidade. No entanto, quando o torcedor abre mão até mesmo de vaiar ou protestar no estádio, ele se despede do senso de coletividade e pertencimento que antes envolviam a ligação com aquela camisa. Não há mais “nós ganhamos” ou “nós perdemos”, apenas uma atitude individualista que encara o clube como um parque de diversões.
A própria defesa de uma possível transformação do clube em Sociedade Anônima de Futebol está associada à necessidade desesperada e vazia de encontrar satisfação por meio da vitória. Muitas vezes, a SAF se resume a um mecenas, seja ele do Texas, Singapura ou Júpiter. Alguém deve financiar a minha felicidade. A reorganização financeira e administrativa do clube se torna secundária diante da necessidade de receber a gratificação imediata que me é devida. O torcedor-cliente está pronto até para renunciar a seu direito de voto em prol de receber uma taça o mais rápido possível – de preferência, uma taça palpável e audível. O clube é trocado por uma empresa. Se necessário, aqui está meu CNPJ para entrar no estádio.
O torcedor-cliente atualmente adquire ingressos para os jogos seguindo uma lógica semelhante à de quem espera horas na fila por um smartphone recém-lançado – obrigado, Sr. Bilionário do Vale do Silício, por dar sentido à minha vida. Comprei um produto e nada pode me impedir de ser feliz, é o raciocínio. No entanto, o clube não é uma empresa, mesmo em formato de SAF. O futebol não se resume a um negócio, mesmo que o cachorro-quente custe trinta reais. O estádio nunca estará vazio: sempre haverá um herói disposto a estar lá.
A arquibancada é o único parâmetro: apenas quem se senta lá pode reivindicar o clube – a história, a camisa, as cores; o passado e o futuro. Seu time está destinado a causar desgosto por décadas, quem sabe até um século, e a realidade é uma só: sua função é suportar. Ou abandonar de vez e traçar outro plano de vida. Porque todos que escolhem um time também assumem o compromisso da aflição. Quase como comprar um apartamento sem nunca ter visto o imóvel. Quase como ser traído diariamente sem saber ao certo por quem. É como jogar uma roleta e girar contra todas as probabilidades. E até hoje todos aguentaram, sem apresentar a conta – na essência, na alma e na realidade.