‘Ostentação do Crime nas Redes Sociais: Como Influencia Jovens no Tráfico.’

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Não basta ter fuzil, é preciso postar’: como ostentação do crime no Instagram e TikTok influencia ida de jovens para o tráfico

DE News Brasil identificou dezenas de perfis e publicações nas redes sociais de jovens com armas; dentre elas, a de um adolescente morto durante megaoperação no RJ, com o que parece ser um fuzil.

Menos de uma semana depois da megaoperação policial no Rio, que deixou mais de 120 pessoas mortas, a Polícia Civil do Estado divulgou um comunicado à imprensa com uma espécie de perfil dos mortos. A lista, segundo a polícia, tinha como objetivo revelar “quem são os criminosos que resistiram às forças policiais e foram neutralizados.”

Um detalhe chamou a atenção no arquivo, um PDF de 35 páginas dividido em colunas: uma dessas colunas, de nome “foto redes sociais”, trazia prints de publicações no Instagram e no Facebook e elencava os posts (ou ausência de publicações recentes) como evidência de possíveis relações dos mortos na operação com o tráfico.

A polícia também incluiu, para alguns deles, link direto para suas contas nas redes sociais e de amigos em comum que publicaram fotos com essas pessoas.

A ofensiva policial às redes sociais buscou, e encontrou, em alguns dos perfis, publicações com imagens do que parecem ser fuzis, pistolas, acessórios militares, drogas, dinheiro e menções ao Comando Vermelho, embora não seja possível confirmar de forma independente que as armas sejam verdadeiras. Para a instituição, as imagens evidenciam algum tipo de vínculo a facções criminosas.

Uma dessas páginas era de um adolescente de 14 anos, morto durante a operação. Em sua conta no Threads (rede social da Meta, geralmente vinculada à conta do Instagram), que continua aberta, é possível ver o adolescente com um cigarro na boca e o que parece ser um fuzil encostado na parede de uma sala. Em outra, ele posa para uma selfie no espelho do banheiro, segurando o que parece ser um fuzil na mão.

As imagens continuavam no ar até o fechamento desta reportagem. Uma delas foi publicada no dia 21 de dezembro do ano passado e outra, no dia 28, data da megaoperação.

O que leva jovens, como este adolescente, a fazer publicações desse tipo? E por que essas imagens continuam a circular nas redes sociais, sem qualquer controle das plataformas?

Na última semana, a DE News Brasil acompanhou uma série de perfis que fazem publicações desse tipo. Segundo pesquisadores, a prática tem se tornado cada vez mais comum e é parte de uma cultura de ostentação e de sensação de pertencimento a uma comunidade, reforçada pelos mecanismos de engajamento das redes sociais, como curtidas e número de seguidores.

Algumas das publicações vistas pela DE tinham milhares de curtidas ou comentários e, em comum, a exibição da rotina do tráfico, com imagens de motocicletas, notas de R$ 100, armas e críticas à polícia.

Após a operação do Rio, alguns desses perfis publicaram também declarações de luto e promessas de vingança.

“Nunca imaginei que ia postar isso. Tiramos plantão juntos ontem, fizemos vários planos. Falei contigo ainda (para) guardar seu fuzil, irmão”, disse um deles, em foto ao lado de uma das pessoas que foram mortas na operação e que aparece no relatório da Polícia Civil. “Pode ficar suave que nós vai vingar e nós vai proteger e cuidar do seu menor”.

Em alguns casos, as armas e os rostos são cobertos por emojis, para manter o anonimato dos usuários. Há frequentemente a associação de hashtags e nomes de diferentes “tropas”, como a Tropa do Urso, vinculada ao traficante Edgar Alves Andrade, o Doca.

Alguns dos perfis também usam hashtags e músicas famosas para “viralizar” seus vídeos, como #fyp, #viralreels e #viral, misturando frases motivacionais com fotos portando armas ou com vídeos de tiroteios.

Há também perfis que entram em trends, ou seja, participam de formatos, desafios ou áudios que estão em alta nas plataformas para alcançar mais pessoas.

Em entrevista à DE News Brasil, o pai do adolescente da foto disse que o filho tinha sido seduzido justamente por essa onda de ostentação via redes sociais. O pai afirma que o filho não conseguia usar um fuzil adequadamente, que a arma só serviria justamente para as fotos.

“Essa ostentação que existe nas comunidades — o que é mostrado na televisão e nas redes sociais — faz com que eles achem que tudo vem com facilidade. Eles pensam que vão chegar ali e terão esse poder. Meu filho queria ‘subir no conceito’, entendeu? Ele tinha essa mentalidade. Ele só falava sobre pessoas no poder.”

Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), afirma que as redes se tornaram, por essa exibição sem precedentes, uma ferramenta importante para investigações policiais.

“Não basta o sujeito ter o fuzil; ele quer postar o fuzil, ostentar o carro, exibir o crime que cometeu. Há casos de criminosos que foram presos por isso”.

Ele acrescenta que, assim como o resto da sociedade, grupos criminosos também se apropriam das plataformas digitais. “O tráfico vira modelo para os adolescentes e a rede social tem um papel importante em construir esse modelo.”

A promotora de Justiça Gabriela Lusquiños, da área de Infância e Juventude no Rio de Janeiro, diz que diversos fatores levam adolescentes à prática de crimes, sendo um deles o acesso sem controle às redes sociais.

“As pessoas querem ser vistas, querem ter visibilidade. A grande maioria desses adolescentes são invisíveis no mundo aqui fora.”

Ela explica que a estética da ostentação ligada ao crime ganhou força com a internet e hoje molda o comportamento de adolescentes de diferentes regiões do país.

“É nítido que essa estética da ostentação ligada ao tráfico, a que associa ao uso de armas, a dinheiro fácil, a estar rodeado por mulheres bonitas, ganhou força com a internet”, diz. “Quando ele vai pra rede social, ele quer ganhar seguidores e status dentro dessa organização criminosa que ele faz parte, quando entra pro tráfico.”

Para a promotora, as redes sociais uniformizam esse imaginário mesmo entre jovens que vivem fora dos grandes centros, em cidades do interior. “Hoje, com as redes sociais, isso ganha uma amplitude. Não há tanta diferença do adolescente em uma grande cidade ou no interior. O padrão é estabelecido pelas redes sociais.”

A juíza Vanessa Cavalieri afirma que esse tipo de publicação é comum porque não há qualquer expectativa de punição por parte de quem publica.

“Eles têm muita certeza da impunidade, de que nada vai acontecer. As redes sociais se tornaram território livre para o crime. No mundo ideal, em que as big techs tivessem uma atuação séria, quando um adolescente posta uma foto com um fuzil, isso imediatamente seria comunicado às autoridades. Mas não fazem isso.”

Titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, a juíza Vanessa Cavalieri afirma que esse tipo de publicação é comum porque não há qualquer expectativa de punição por parte de quem publica.

“Eles têm muita certeza da impunidade, de que nada vai acontecer. As redes sociais se tornaram território livre para o crime. No mundo ideal, em que as big techs tivessem uma atuação séria, quando um adolescente posta uma foto com um fuzil, isso imediatamente seria comunicado às autoridades. Mas não fazem isso.”

A promotora Gabriela Lusquiños destaca que é preciso analisar o papel das redes em conjunto com outros fatores já conhecidos na formação do comportamento infracional, como a estrutura familiar.

“Ele não tem a figura paterna: ou o pai morreu, ou está preso, ou nunca quis saber dele. Aí quando ele tem essa figura masculina, de autoridade, que é esse traficante da favela, ele ganha a visibilidade dele, se sente parte.”

Ela afirma que essa ausência de vínculos afetivos sólidos abre espaço para que as redes sociais funcionem como substituto de reconhecimento e pertencimento.

“Quando eles não têm conexões reais de afeto, vão para o lugar onde encontram, em conexão virtual. Se a regra do jogo é eu ter like, se apresentar como todo mundo se apresenta, eu vou me apresentar, me vestir de uma certa forma, ostentar uso de armas.”

A Meta disse que suas políticas “não permitem o uso de seus serviços para promover atividades criminosas ou conteúdos que glorifiquem, apoiem ou representem organizações e indivíduos perigosos. Removemos esse tipo de conteúdo sempre que identificamos violações e estamos continuamente aprimorando nossa tecnologia para detectar e lidar com atividades suspeitas. Também incentivamos as pessoas a denunciar qualquer conteúdo que considerem contrário aos nossos Padrões de Comunidade, ajudando-nos a manter nossas plataformas seguras para todos.”

A Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou ver “com preocupação a circulação de conteúdos ilícitos como esses nas plataformas”, que, violam a legislação brasileira e os próprios termos de uso das empresas de tecnologia.

Em diferentes países, pesquisas indicam que estratégias de combate ao tráfico só alteram a estrutura das organizações quando reduzem a entrada de novos integrantes. Um estudo publicado na revista científica Science em setembro de 2023, conduzido por Rafael Prieto-Curiel, Gian Maria Campedelli e Alejandro Hope, analisou a evolução dos cartéis no México entre 2012 e 2022 e chegou à conclusão de que essas organizações dependem de uma renovação constante de recrutamentos para sobreviver.

Os autores afirmam que “cartéis precisam recrutar entre 350 e 370 pessoas por semana para evitar o colapso”. O estudo mostra que a repressão isolada não altera esse equilíbrio, porque cada perda de integrante é reposta rapidamente. Por isso, concluem que aumentar o número de prisões eleva tanto os homicídios quanto o total de membros dos cartéis, já que a rotatividade criada pela repressão gera novas disputas internas e vagas que são imediatamente preenchidas.

Um das conclusões do artigo é que há necessidade de oferecer oportunidades educacionais e profissionais, especialmente em áreas com alto apoio aos grupos criminosos, “que superem os benefícios de curto prazo oferecidos pelos cartéis.”

Conclusão

Frear o recrutamento de jovens é essencial para reduzir o tráfico, afirmam estudos e autoridades. As redes sociais desempenham um papel significativo na disseminação da cultura de ostentação e pertencimento a grupos criminosos, influenciando diretamente a ida de jovens para o tráfico. Medidas como a remoção de conteúdos ilícitos e ações mais efetivas por parte das big techs são necessárias para combater esse fenômeno e proteger crianças e adolescentes da exposição a imagens vinculadas à violência e à criminalidade. É fundamental adotar estratégias educacionais e profissionais que ofereçam alternativas aos jovens em comunidades vulneráveis, visando romper com a cultura da ostentação e da violência. O monitoramento constante e o fortalecimento das políticas de proteção à infância e à juventude são essenciais para evitar que as redes sociais se tornem terreno fértil para o recrutamento de novos integrantes para o crime organizado.

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