Paraísos dominados: como facções transformaram destinos turísticos do Nordeste em um grande negócio
DE de Galinhas, Jericoacoara e Pipa têm presença de facções que controlam a rotina, cometem crimes cruéis, monitoram policiais e faturam alto vendendo drogas a turistas
1 de 10 Jericoacoara, Pipa e Porto DE Galinhas têm presença de facções no litoral nordestino — Foto: Caroline Souza/BBC
Jericoacoara, Pipa e Porto DE Galinhas têm presença de facções no litoral nordestino — Foto: Caroline Souza/BBC
Coqueiros, águas mornas, frutos do mar… Venda de drogas à luz do dia, “olheiros” monitorando as esquinas, assassinatos violentos e uma vida local dominada pelo poder paralelo das facções. Essa descrição hoje serve para três dos principais (e mais bonitos) destinos turísticos de praia do Nordeste brasileiro: Porto DE Galinhas, em Pernambuco; Pipa, no Rio Grande do Norte; e Jericoacoara, no Ceará.
E as semelhanças não param por aí. Praias mais famosas de seus respectivos Estados, as três mantêm um certo clima de tranquilidade, com regras do crime organizado para coibir roubos contra aqueles que as visitam – uma forma de não afastar os turistas que movimentam a economia e o tráfico na região.
Para quem mora ali, porém, a presença e a crueldade das facções são bastante conhecidas, das ameaças a quem não cumprir ordens e decapitações aos pontos de venda em espaços centrais das vilas, segundo moradores, autoridades e pesquisadores com quem a BBC News Brasil conversou nas últimas semanas.
“O Estado vende isso aqui como o paraíso, mas não garante o mínimo para a população. O assunto é ainda abafado na cidade, porque não se pode falar mal para não correr o risco perder turistas”, diz Carla, uma moradora de Jericoacoara.
“É normalizado. Você sabe sempre quem é o olheiro, o pistoleiro ou o gerente de boca, e interage com eles todos os dias, no mercado, na rua, nos bares”, resume Ricardo, morador de Porto DE Galinhas.
O nome de todos os moradores foram alterados na reportagem para garantir a segurança deles.
Além das três praias, também há notícias de grupos criminosos atuando em outros destinos populares no Nordeste, como São Miguel dos Milagres, em Alagoas, e na região de Trancoso e Caraíva, na Bahia.
Por trás do cenário de violência, está o processo de expansão das facções pelo Brasil, antes restritas às grandes cidades e fronteiras, e a alta circulação de dinheiro nessas vilas que concentram festas e turistas de alto poder aquisitivo.
“São como filiais do negócio de drogas. O descontrole desde a fronteira, passando pelos grupos de Rio e São Paulo, deságua aqui”, resume o promotor de Justiça Eduardo Leal dos Santos, de Ipojuca, cidade do Grande Recife onde está localizada a praia de Porto DE Galinhas.
“E elas encontraram nesses destinos do Nordeste uma alta concentração de renda, com turismo ligado a festas e uso recreativo de drogas o ano inteiro. São também cidades com muito movimento, mas com estrutura de cidade pequena, com poucos policiais e pouca presença do poder público”, completa Santos.
Só uma caderneta apreendida pela Polícia Civil com um traficante na praia pernambucana mostrou uma movimentação de quase R$ 10 milhões por ano, segundo um inquérito concluído no fim de 2022.
2 de 10 Facções presentes em praias famosas do Nordeste — Foto: Caroline Souza/BBC
Facções presentes em praias famosas do Nordeste — Foto: Caroline Souza/BBC
Apesar da presença em geral fora dos olhos de turistas, o domínio das facções tem repercutido nos últimos anos diante de casos de repercussão nacional que escancaram a força dos grupos.
Em Jericoacoara, por exemplo, o assassinato de um turista de 16 anos de São Paulo, em dezembro de 2024, ganhou as manchetes pelo Brasil.
Segundo a conclusão da Polícia Civil do Ceará, ele foi confundido pelo Comando Vermelho, facção que domina a praia, como membro de um grupo rival paulista. O jovem não tinha ligação com grupos criminosos – e a polícia chegou a investigar se um gesto que ele fez com as mãos para tirar uma foto teria sido o motivo para o crime.
“Ele estava com o pai na praça e resolveu voltar sozinho para a pousada. No caminho ele foi abordado por esse grupo de pessoas que atribuíram a ele, ninguém sabe por qual motivo, a participação nessa organização criminosa”, disse na época o diretor da Polícia Civil, Marcos Aurélio França.
No mesmo mês, em Pipa, um triplo homicídio na principal rua da vila, a Avenida Baía dos Golfinhos, causou pavor entre os moradores e turistas.
22 pessoas são presas em ação contra facção em Fortaleza e RMF
22 pessoas são presas em ação contra facção em Fortaleza e RMF
Segundo a Polícia Civil do Rio Grande do Norte, os crimes, bem na esquina da delegacia local, foram motivados por uma briga entre facções criminosas rivais.
“Um novo grupo criminoso queria entrar em Pipa, mas durou pouco a investida”, disse uma fonte policial à BBC News Brasil. O grupo que se mantém dominante ali é o Sindicato do Crime, surgido no Rio Grande do Norte.
Já em Porto DE Galinhas, em 2022, numa demonstração de força que até hoje está na mente dos moradores, estradas foram bloqueadas e o comércio fechou as portas após ordem da facção local, a Trem Bala.
O toque de recolher aconteceu após uma operação da Polícia Militar contra a facção acabar com a morte de uma criança de 6 anos, vítima de bala perdida.
Na última sexta-feira (18/07), em um novo caso recente, um jovem foi morto em Porto após trocar tiros com policiais.
Mas como cada uma dessas praias chegou a esse ponto?
DE DE Galinhas: CÂMERAS DO CRIME E VIDROS ABAIXADOS
3 de 10 Porto DE Galinhas — Foto: Getty Images via BBC
Porto DE Galinhas — Foto: Getty Images via BBC
A pouco mais de um quilômetro das piscinas naturais que deram fama internacional a Porto DE Galinhas, a vida é controlada sob olhos atentos da facção que surgiu no litoral pernambucano, a Trem Bala – mais recentemente conhecida como Comando do Litoral Sul.
Nas comunidades de Salinas, Socó e Pantanal, onde vive grande parte da força de trabalho da praia, moradores são proibidos de chamar a polícia, câmeras instaladas na rua pelas gangues monitoram o movimento de quem entra e sai e agentes públicos precisam baixar os vidros de carros e se identificarem para acessar a região, segundo fontes disseram à BBC News Brasil.
O grupo Trem Bala domina outras praias no Litoral Sul de Pernambuco, começando no Cabo de Santo Agostinho, cidade que está na 5ª colocação entre as cidades mais violentas do Brasil em 2024, segundo dados recém-divulgados no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A cidade seria justamente um local de disputa entre o Trem Bala e outros grupos que atuam mais próximos do Recife.
Em Ipojuca, onde está Porto DE Galinhas, os números de violência são menores, desde um pico de assassinatos em 2017.
“São baixos por não haver mais disputa entre grupos, o que reduz as mortes. Não é porque é seguro, é porque não tem mais outra facção para disputar”, disse uma fonte policial à BBC News Brasil.
Em Porto DE Galinhas, segundo essa fonte e moradores, há leis informais da facção que proíbem roubos e brigas nas ruas.
“Diferenças com mau pagamentos, divisão de terras, discussões de vizinhos, som alto, tudo deve passar pela facção”, relata Ricardo, morador.
Em um caso que chegou à Promotoria da Criança de Ipojuca, uma menina com menos de 18 anos foi torturada até a morte por praticar pequenos furtos.
O promotor Eduardo Leal dos Santos relata a prática de um tribunal do crime a quem descumpre alguma ordem ou tente deixar o grupo. “Tem uma cultura de decapitar mediante tiro de escopetas calibre 12. Do peito para cima, não sobra nada”, diz.
4 de 10 Armas e drogas apreendidas em Porto DE Galinhas — Foto: Polícia Civil
Armas e drogas apreendidas em Porto DE Galinhas — Foto: Polícia Civil
A Polícia Civil já encontrou também cemitérios clandestinos em regiões de mangue, onde são enterrados os julgados pelo tribunal por “burlar” leis próprias, como comercializar drogas sem a autorização dos líderes e ser informante da polícia.
Além disso, há um controle para que crimes contra turistas não sejam cometidos, como assaltos.
O promotor Eduardo Santos explica que esse controle ocorre pelo receio de prejudicar o negócio.
“Assim, você vai parar a receita deles e atrair a polícia”, diz.
Mas nem sempre é assim.
Luzia, uma ex-empresária da região, preferiu se mudar de Porto DE Galinhas após um dia receber uma ordem da facção para fechar as portas de seu negócio. Começou a ter crises de ansiedade por morar ali.
“Eu vi os homens com armas na minha porta, gritando, algo horrível”. Ela descreve o dia do toque de recolher em 2022, quando uma menina foi assassinada numa operação policial.
Os três dias de tensão escancararam a força da facção, dominante desde 2019. O grupo tem ligações com a facção carioca Comando Vermelho, mas também compra drogas do PCC, segundo inquérito da Polícia Civil ao qual a BBC News Brasil teve acesso.
O pesquisador e sociólogo Eduardo Matos de Alencar, que trabalhou em projetos de segurança na prefeitura de Ipojuca e no governo de Pernambuco, diz que desde 2013 havia rumores de um grupo se organizando para controlar o território de Porto DE Galinhas.
A situação chama a atenção desde o início porque Pernambuco é considerado um estado fracionado entre facções, sem grupos muito poderosos que controlam grandes territórios, como no Ceará ou Rio Grande do Norte, explica Alencar.
“Mas Porto DE Galinhas tinha um mercado consumidor enorme e um território com muitas conexões por manguezais que facilitam fugas e transporte”, opina Alencar, presidente do Instituto Arrecifes e autor do livro De quem é o comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil.
Porto DE Galinhas também está na mesma cidade que o Porto de Suape, o principal de Pernambuco
Uma fonte do poder municipal de Ipojuca diz que a chegada dos grandes empreendimentos à região nos anos 2010, com seus milhares de trabalhadores, fortaleceu o tráfico de drogas
“Os empreendimentos tanto em Suape quanto na própria praia de Porto trouxe um ganho financeiro, mas um prejuízo social muito grande. Por incrível que pareça, esse aumento de renda não se reverteu em benefício à população”, diz Fernanda, que atua em projetos em Porto DE Galinhas.
5 de 10 Piscinas naturais de Porto DE Galinhas atraem milhões de turistas — Foto: Getty Images via BBC
Piscinas naturais de Porto DE Galinhas atraem milhões de turistas — Foto: Getty Images via BBC
A cidade de Ipojuca, com 99 mil habitantes, hoje tem o maior PIB per capita de Pernambuco, número que não se reflete nos índices sociais – só o 92º em taxa de escolarização no Estado, por exemplo.
Sem muita perspectiva de futuro, os mais jovens são facilmente aliciados pelo crime.
“É uma mão de obra extremamente barata para o tráfico. A gente recebe crianças sem perspectivas, sem sonhos”, diz o promotor Eduardo dos Santos, um dos criadores do projeto Voltar a Sonhar, que tenta fornecer atividades para jovens não ficarem ociosos.
“Quando o poder público age fazendo operações para prender, ele age no sintoma, não na causa”, completa.
Entre 2018 e 2022, somente em Ipojuca, foram realizadas prisões de ao menos cem pessoas vinculadas a organizações criminosas.
Mas essas operações, segundo fonte policial disse à BBC, acabam tendo um efeito indesejado. “A gente acaba prendendo os rivais, e essa facção [Trem Bala] cresce cada vez mais”.
Em nota, a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco disse que “monitora a presença e coíbe a instalação e expansão dessas organizações”. Uma operação nacional coordenada pelo Estado em abril cumpriu 53 mandados de prisão.
PIPA: DIVISÃO DE TAREFAS E MONITORAMENTO
DE de 10 Pipa é o destino mais badalado do Rio Grande do Norte — Foto: Getty Images via BBC
Pipa é o destino mais badalado do Rio Grande do Norte — Foto: Getty Images via BBC
Na praia mais famosa do Rio Grande do Norte, Pipa, na cidade de Tibau do Sul, as tarefas do crime são cuidadosamente divididas.
“Só falta assinar a carteira, são organizados demais”, diz uma fonte da Polícia Civil do Estado à BBC News Brasil.
Entre os cargos, estão o “vapor”, que anda com bolsas carregadas de drogas para venda, e o “visão”, como são chamados os olheiros que ficam nas esquinas avaliando o movimento suspeito e identificando possíveis interessados.
Geralmente meninos muito jovens de regiões carentes, eles têm salário definido, trabalham em escalas de 12 horas por dia, sete dias corridos, com folgas nos dias seguintes. E também pagam uma mensalidade para serem membros do grupo criminoso.
“Você se sente observado por eles o tempo todo”, conta Cláudia, uma moradora local. Nos bares, o assunto costuma ser ignorado pelos moradores, e quem fala é aconselhado a silenciar.
Os jovens são todos membros do Sindicato do Crime, facção surgida no Rio Grande do Norte em 2013, dentro do Presídio de Alcaçuz, na Grande Natal – onde, cinco anos mais tarde, haveria um massacre com 27 mortos em um confronto do grupo com o PCC.
Após se expandir para fora da prisão, em Natal, o grupo seguiu o caminho da expansão pelo Estado, onde as forças de segurança são mais frágeis, explica a antropóloga Juliana Melo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
“O Rio Grande do Norte é pequeno, mas estratégico porque tem fiscalização fraca nos portos e pouca inteligência policial, com foco de punir. O Estado é o ponto mais próximo da Europa e está do lado do Ceará, outro ponto importante”, ressalta Melo.
Há uma estimativa de que hoje haja 20 mil filiados ao Sindicato do Crime no Estado, segundo uma fonte policial com familiaridade com o assunto disse à BBC News Brasil.
Quando a facção nasceu, já havia um plano de chegar logo a Pipa. Isso porque, segundo relato dessa fonte, dois de seus fundadores eram da região.
“Então a dominância da praia tinha valor simbólico e político para a facção”, diz.
DE de 10 Material encontrado com grupos criminosos em Pipa — Foto: Polícia Civil
Material encontrado com grupos criminosos em Pipa — Foto: Polícia Civil
Mas a chegada à praia também era estratégica, por conta da alta circulação de turistas de alto poder aquisitivo.
Muito além de destino paradisíaco, nos últimos anos Pipa se consolidou como um dos grandes pontos de festas do litoral nordestino.
“Essa facção vive basicamente do tráfico, e aqui virou polo de gente em buscas de festas e com uma vibe liberal, de uso não só de maconha, mas de drogas sintéticas”, completa a fonte.
Em Pipa, o tráfico era tão escancarado que chegou