É uma batalha: por que técnicas mulheres ainda são minoria em times do Brasileirão Feminino
Só quatro dos 16 clubes da elite nacional contam com treinadoras no banco de reservas; profissionais do meio veem atraso histórico, mas avanço tímido em cargos de liderança
Seleção Brasileira usa Data Fifa para treinos e aquecimento para Supercopa Feminina [https://s04.video.glbimg.com/x240/13371311.jpg]
O Campeonato Brasileiro Feminino Série A1 começa neste sábado (22), e 16 equipes vão em busca do título, com grandes craques e atletas de Seleção em campo. Fora dele, porém, os homens ainda dominam a prancheta. São apenas quatro treinadoras entre os 16 times que compõem o campeonato: Camila Orlando, do Palmeiras, Carine Bosetti, do Avaí/Kindermann, Jéssica de Lima, da Ferroviária, e Thaissan Passos, do Grêmio.
Na Supercopa do Brasil, torneio que deu início ao calendário nacional do futebol feminino em 2025, o cenário não foi diferente. Dos oito times que disputaram o campeonato, somente dois eram treinados por mulheres: Thaissan Passos, do Grêmio, e Regiane Santos, do Sport. Os números retratam a realidade do esporte no Brasil, mas os dados são mundiais. Segundo relatório da Fifa, ligas de futebol feminino contam com apenas 22% de treinadoras mulheres. [https://ge.globo.com/blogs/dona-do-campinho/post/2025/03/18/ligas-de-futebol-feminino-contam-com-apenas-22percent-de-treinadoras-mulheres-aponta-relatorio-da-fifa.ghtml]
Em novembro do ano passado, a técnica Camilla Orlando comandou o Palmeiras na conquista do Paulistão Feminino e foi eleita a melhor treinadora da competição. Primeira campeã na história do Verdão, ela também estabeleceu a marca de ser a primeira mulher a vencer a premiação individual. Mas os troféus representam muito além disso.
— Eu entendo que é uma batalha, porque muitas outras treinadoras me inspiraram e eu quero poder inspirar outras mulheres. Feliz com a oportunidade de estar fazendo história, mas que isso se multiplique e não seja pra sempre assim.
Apenas três em 11 clubes foram comandados por mulheres no estadual mais forte do Brasil em 2024. No Brasileiro Feminino da Série A1, o cenário não foi diferente: só quatro entre os 16 times.
Em nenhum dos dois campeonatos o número de mulheres no comando técnico das equipes superou os 30% na temporada passada. Algo que se mantém em 2025.
3 de 8 Técnicas mulheres são minoria na Série A1 — Foto: ge
HISTÓRICO AINDA PESA
Hoje, a modalidade conta com clubes cada vez mais estruturados e um calendário organizado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mas nem sempre foi assim. O futebol praticado por mulheres, por exemplo, foi proibido por mais de 40 anos no Brasil.
O veto teve início em 1941, durante o Estado Novo do então presidente Getúlio Vargas, que assinou um decreto-lei para impedir mulheres de praticarem esportes considerados incompatíveis com as condições de sua natureza. Elas só puderam voltar a campo livremente com o fim da Ditadura Militar, em 1985.
Para Fabiana Guedes, auxiliar-técnica do Red Bull Bragantino, os fatores históricos ainda pesam.
— Quatro décadas de atraso é muito. Culturalmente falando, essa desigualdade histórica afetou muito e afeta até hoje, porque desde então a gente não tem muitas referências e essa falta de referências vai desencadeando outras coisas.
2 de 8 Fabi Guedes, auxiliar-técnica do Red Bull Bragantino — Foto: Reprodução: Instagram/ Fabi Guedes
Fabi Guedes, auxiliar-técnica do Red Bull Bragantino — Foto: Reprodução: Instagram/ Fabi Guedes
Fabi é ex-jogadora e foi uma das primeiras atletas brasileiras a jogar no futebol inglês. Na Inglaterra, ela vestiu a camisa do Keynsham Town LFC, e foi lá que o interesse pela carreira técnica ganhou força. O nível do futebol estrangeiro e o aprofundamento tático foram importantes para a construção da ideia, mas a incerteza na carreira de atleta ao retornar ao Brasil foi determinante.
A auxiliar-técnica do Red Bull Bragantino pendurou as chuteiras aos 32 anos, muito em razão das más condições e falta de planejamento.
— Em um ano tinha times de camisa, no próximo ano já não tinha. Um ano tinha campeonato sólido e no próximo já não tinha. Hoje nós temos um calendário.
— Eu tive companheira que chegou a jogar pela seleção brasileira e que desistiu com 27 anos.
E A SELEÇÃO?
Na história da Seleção, apenas duas mulheres comandaram o time principal: Emily Lima, entre 2016 e 2017, e a sueca Pia Sundhage, que dirigiu a equipe entre 2019 e 2023.
Emily ficou menos de um ano no comando do Brasil, mas é uma das treinadoras mais vencedoras do futebol brasileiro. Ela foi a primeira mulher a conquistar o Campeonato Paulista, quando ganhou a competição em 2015 pelo São José, e em 2018 voltou a repetir o feito com as Sereias da Vila, time feminino do Santos. Hoje, ela é treinadora da seleção peruana.
Pioneira, Emily acredita que seu legado está baseado no trabalho em equipe e que a oportunidade de trabalhar com profissionais capacitados foi fundamental ao longo da sua carreira. O tempo que teve para se preparar enquanto atleta e o apoio do irmão também foram decisivos.
3 de 8 Emily Lima, treinadora brasileira da seleção feminina do Peru — Foto: Divulgação/FPF
Emily Lima, treinadora brasileira da seleção feminina do Peru — Foto: Divulgação/FPF
— As várias lesões que eu tive no joelho durante a carreira fizeram com que eu começasse a estudar antes e esse empurrão do Weber fez com que eu buscasse antes.
Para a treinadora, a falta de mulheres no comando técnico de equipes femininas não é uma exclusividade do futebol.
— Por que no vôlei, no basquete, no handebol não tem tantas treinadoras mulheres nas equipes femininas? Nosso país ainda vive tantas dificuldades e está longe da realidade do futebol feminino no mundo.
— O fato de a gente ser mulher, e não é só no futebol, é em qualquer âmbito de trabalho, você sendo mulher vai passar dificuldade. Eu passei por situações e continuo passando, mas isso faz com que eu cresça a cada dia, porque a cada dia busco conhecimento para que eu possa conversar na mesma altura com essas pessoas.
Camilla Orlando, do Palmeiras, compartilha do mesmo sentimento.
— Às vezes a gente passa por desigualdade salarial e passa por desigualdade de confiança no trabalho. A gente tem que estar sempre um pouquinho a mais, mas tudo bem, eu tento enxergar isso como uma coisa positiva. Eu tento enxergar isso como uma oportunidade de ser ainda melhor e ter que me dedicar ainda mais.
— Não quero que exista uma competição com os homens, muito pelo contrário, eu acho que eles fortalecem a nossa caminhada. É uma questão de igualdade, de luta pela igualdade, da gente ter a mesma oportunidade e não ser comparada.
4 de 8 Camilla Orlando, técnica do Palmeiras, comanda vitória sobre o Corinthians — Foto: Mauro Horita/Ag. Paulistão/Centauro
A técnica do Palmeiras entende também que é preciso valorizar e reconhecer a potência da modalidade, em especial pelo espaço que algumas mulheres estão conquistando.
— A gente precisa reconhecer a nossa potência como modalidade e como mulheres experientes. A gente tem muitas mulheres gestoras no processo: a Aline Pellegrino [Gerente de Competições da CBF], a gente tem a Leila, presidente do meu clube, a Ana Lorena [Diretora de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol], a gente já tem mulheres que fazem essa gestão no Brasil.
LIDERANÇAS FEMININAS
Nuty Silveira, diretora de futebol feminino da Ferroviária, é um exemplo de gestora no cenário do futebol feminino brasileiro.
Ela atuou como atleta de futsal do time de Araraquara e teve uma breve passagem pelo campo em 2015, ano em que o time foi campeão da Libertadores. Em meio à carreira, surgiu o interesse pela administração, e algumas lesões aceleraram seu processo de transição para fora dos campos.
5 de 8 Nuty Silveira e Jéssica de Lima mostram camisa com nome da filha da treinadora — Foto: Foto: Rafael Zocco | Ferroviária
Entre 2017 e 2020, Nuty foi supervisora do time enquanto ainda jogava alguns campeonatos de futsal. Após um período fora do futebol, voltou em 2021 para atuar na Federação Paulista e poucos meses depois recebeu o convite da Ferroviária para o cargo de direção.
— A Ferroviária sempre teve como um dos seus pilares a filosofia de ter uma política afirmativa e ter mulheres nos principais cargos, seja como treinadora ou na comissão técnica, coordenação. Sempre foi uma opção ter mulheres para que justamente a gente tenha espaço, essa voz ativa e sejam quem toma as decisões — conta.
O investimento em mulheres em posições de liderança pode servir de inspiração para mais profissionais, mas também dá resultados esportivos. No comando das Guerreiras Grenás, Tatiele Silveira foi a única treinadora mulher a vencer o Campeonato Brasileiro Feminino Série A1, em 2019, e Lindsay Camila foi a única a vencer a Libertadores Feminina, em 2020.
— Para que a gente tenha representatividade, para que a gente tenha mulheres, a gente tem que primeiro oportunizar e também saber que essas mulheres como qualquer pessoa vão errar em algum momento, mas a gente tem clareza de dar oportunidade nesse processo — explica Nuty.
6 de 8 Géssica Nascimento em ação pelo Red Bull Bragantino — Foto: Reprodução: Instagram/Géssica Nascimento
Géssica Nascimento em ação pelo Red Bull Bragantino — Foto: Reprodução: Instagram/Géssica Nascimento
A OPINIÃO DAS ATLETAS
Géssica, que já atuou pela Ferroviária e hoje está no Red Bull Bragantino, conta sobre as experiências que teve sendo treinada por mulheres.
— É muito legal ver o crescimento e acreditar que as mulheres também podem estar nesse comando. Até mesmo a maneira como elas trabalham, procuram entender mais, não só sobre a atleta, mas o ser humano. Ter mulheres no comando me ajudou muito, então espero que outras equipes possam ver que as mulheres também têm capacidade de comandar.
Para Diany, meio-campista do Palmeiras, e com passagem multicampeã pelo Corinthians, não há diferenças no comando em razão do gênero.
— Não acho que há diferenças. Existem metodologias diferentes de trabalho, independente de ser homem ou mulher.
7 de 8 Diany, meio-campista do Palmeiras — Foto: Reprodução: Instagram/Diany
Ela ainda destacou que todos os treinadores que teve em sua carreira já tinham experiência no futebol feminino.
Diany acredita que as mulheres demoraram a assumir cargos de liderança, em especial pelos anos de proibição da modalidade no país, o que teria influenciado e atrasado a evolução do futebol de mulheres e feito por elas. Apesar disso, ela pensa que o jogo está virando.
— Em breve teremos muitas em posição de comando, mas precisa haver inclusão, mais oportunidades. Os cursos de licenciamento, por exemplo, são caros e demandam além de tempo e energia, dinheiro. Muitas ex-jogadoras que seriam essenciais nessa mudança de cenário às vezes não têm como estudar e conseguir as licenças necessárias.
O fator financeiro é visto de forma recorrente como um impeditivo.
— Você tem que investir na sua carreira, né? Não é fácil, e não é um investimento barato passar por todas as licenças da CBF — diz Camilla Orlando.
— O valor das licenças é alto e a gente trabalha no futebol feminino em que o salário não está tão alto assim, a gente vem brigando por isso e as jogadoras estão conseguindo melhorar, mas está longe — também reflete Fabi Guedes.
INCENTIVOS
Hoje, existem iniciativas das entidades responsáveis pelo futebol, como a Fifa, Conmebol, CBF e Federação Paulista, que exigem investimento no futebol feminino. Desde 2019, por exemplo, os clubes da Série A do Brasileiro passaram a ser obrigados a manter equipes femininas.
As organizações também começaram a oferecer incentivos para a formação de profissionais com cursos e projetos. No final do ano passado, por exemplo, a CBF lançou o projeto “Professoras Pretas”, que garante bolsas de estudo para os programas de formação de treinadores da CBF Academy, cobrindo taxas e, em alguns casos, despesas de hospedagem, alimentação e transporte.
A Federação Paulista de Futebol também tem se esforçado para formar profissionais que atuem no futebol feminino. O Programa de Liderança Feminina é um dos grandes exemplos, voltado para mulheres que buscam desenvolvimento em cargos de liderança.
— Eu acho que a gente está caminhando cada vez mais para que os clubes invistam, tenham esse desenvolvimento e se mantenham para ter pessoas especialistas nas modalidades. Vai haver muito benefício para quem entender isso e para quem não entender, achar que é uma obrigatoriedade, vai ficar para trás — comenta Nuty Silveira.
FIFA escolhe o Brasil como sede da Copa do Mundo Feminina 2027 [https://s03.video.glbimg.com/x240/12606250.jpg]
Camilla Orlando também explora o potencial da modalidade, sobretudo com a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2024 e com a conquista do Brasil para sediar a Copa do Mundo Feminina em 2027.
— A gente não pode esquecer que demos passos e que a gente está dando passos. A gente precisa ter paciência, não tem como chegar do primeiro andar ao centésimo em um ano, a gente pode acelerar e na minha opinião estamos fazendo isso. Em 2027 a gente recebe a Copa do Mundo e temos tudo para aproveitar ela da melhor forma possível.
E é com representatividade e investimento que mais profissionais podem ganhar espaço no futebol feminino. Ester, ex-jogadora do Santos, Chelsea e da Seleção brasileira, hoje tem uma empresa de investimentos, mas deseja retornar ao futebol.
Ela foi a primeira brasileira a jogar na Inglaterra, em 2012, e a passagem pelo futebol inglês despertou interesse pela tática e forma que o futebol é gerido. Lá, a ex-jogadora foi treinada pela lendária técnica Emma Hayes, campeã olímpica pelos Estados Unidos em 2024.
8 de 8 Ester, Ramirez, Oscar e David Luiz no Chelsea — Foto: (Foto: Divulgação/Site oficial do Chelsea)
Ester, Ramirez, Oscar e David Luiz no Chelsea — Foto: (Foto: Divulgação/Site oficial do Chelsea)
— É uma treinadora que eu me espelho muito, porque ela sabe como atuar, como lidar com as mulheres, ela é calma, mas é um pouco rígida e firme para que não vire bagunça — comenta aos risos.
Ester hoje vê “muitas mulheres no comando técnico de clubes dando a cara para bater, chamando a responsabilidade e mostrando que a mulher também entende de futebol” e não descarta se juntar a elas.
— Eu tenho interesse em atuar em uma comissão técnica, até mesmo como uma treinadora, quem sabe… mostrando que ainda é possível sonhar.