A segurança pública é dever do estado e direito e responsabilidade de todos. A interpretação sobre como essa garantia social ocorre ou deveria ocorrer pode ser uma das explicações para o registro de novas armas disparar em Goiás nos últimos dois anos. O total saltou de 4.595 para 8.880 entre 2019 e 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado nesta terça-feira, 28.
A tendência de aumento da presença de novas armas entre a população civil foi constatada em todo o país em taxas acima dos 90%. Em nível nacional, Acre (358,8%), Espírito Santo (350,8%) e Mato Grosso (338,7%) lideraram o ranking de estados com maior variação. Somente em Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba a alavancada foi abaixo de 20%. Os únicos com queda de registros foram Amapá e Distrito Federal.
Para a socióloga e advogada do Projeto Bertha, Gabrielle Andrade, a representação da arma na sociedade ajuda a explicar o anseio das pessoas pelo armamento. Ela afirma que a associação com a figura do presidente Jair Bolsonaro, que defende claramente essa bandeira, deve ser considerada em conjunto com questões como machismo, preconceito e políticas públicas.
“Isso vem sendo alimentado por uma reafirmação de força, masculinidade, e as pessoas se sentem tentadas porque passam a se perceber mais poderosas com a possibilidade de se defenderem. Esse contexto social vem sendo estimulado e com a crescente flexibilização da legislação, a probabilidade é de que a quantidade de armas aumente junto ao cidadão médio.
O argumento de que a arma é uma segurança a mais do ponto de vista individual para os cidadãos de bem não faz sentido, na perspectiva de Gabrielle. Ela questiona quem, então, seria cidadão de bem já que muitas pessoas desse grupo são as mesmas que usam e usariam o equipamento para matar companheiras e também os filhos. A ascensão dos números de feminicídio confirmariam essa correlação, de acordo com a socióloga, assim como o de massacres em escolas brasileiras já que não haveria como coibir o acesso de crianças aos artefatos.
“A flexibilização do acesso às armas no nosso País como já ocorre em países como os Estados Unidos só faria sentido após alterações de ordem estrutural, de como o brasileiro se enxerga e reage a marcadores sociais, a exemplo da forma como trata a mulher, as pessoas negras, no trânsito. Estamos falando de mudanças de comportamento de toda uma sociedade, o que leva tempo”, pontua.
Tiro como esporte
Os goianos já têm o terceiro maior número nacional de registros ativos de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores – os CAC’s – e concentra boa parte de clubes de tiro e lojas de arma de fogo brasileiros, segundo dados do Exército obtidos pelo Instituto Sou da Paz relativos a 2021. A explicação para o crescente interesse das pessoas pelo uso de armas de fogo é multifatorial. A segurança pessoal vem à mente, mas passa pela curiosidade e até hobby. No caso das mulheres, a autodefesa figura como uma das principais razões.
“A maioria busca a sensação de segurança para a família e depois o esporte. Cresceu muito de 2015 a 2018. Foi cerca de 50% nesse período e a partir disso subiu 300%. A presença de mulheres de todas as idades, inclusive senhoras, nos últimos sete anos está na casa dos 30%”, afirma o instrutor de tiro Wene Duarte, que também é dono da Elite Despachante de armas e Weapon Fire armas e munições.
De acordo com o proprietário do clube de tiro TZB, Hugo Santos, a adesão do público ao esporte faz parte de um processo iniciado no governo Dilma, continuado na gestão Temer e em vigor na presidência de Jair Bolsonaro. O posicionamento armamentista do atual governo não estaria ligado ao crescimento da atividade, na perspectiva dele.
“Ainda existe muita falta de informação e um receio histórico em relação a armas de fogo. Essas pessoas têm medo. Para elas, é como se a arma tivesse vontade própria sendo que é a mesma coisa de um veículo ou uma faca. Eles podem ser usados para fazer o mal, mas a decisão de como vai ser usada essa ferramenta é do ser humano. Isso vale para veneno, pedra e até palavras”, defende.