Em pleno século 21 ainda cabe ser dona de casa? Para muitas mulheres, sim. Na contramão do discurso liberal e capitalista, muitas estão optando por fazer o caminho de volta aos lares. A tendência está presente em classes diferentes e já conta com um nicho até nas redes sociais com influencers compartilhando vídeos e imagens da rotina doméstica, como arrumar a cama, tomar café, preparar o almoço e mimar a família. Juntas, elas integram o grupo “inchado durante a pandemia” formado por aproximadamente 7% das brasileiras, segundo estatística do Datafolha.
O dia a dia desgastante da enfermeira chefe de plantão Kelly Gonçalves a fez repensar a vida profissional. A pressão e o cansaço físico de seis anos e meios quase diariamente em um hospital a fizeram propor uma mudança “radical” ao marido e aos olhos de muitas pessoas de seu convívio. Aos 30 anos, atualmente ela se dedica aos cuidados da filha de 11 meses, da bebê apenas dois meses de vida que espera na barriga, da casa, do marido e de uma loja de semijoias. O rendimento financeiro anual agora supera ao do passado.
Para ela, o retorno ao mercado de trabalho tradicional é uma possibilidade distante. O critério não seria pautado por desejo pessoal, mas exclusivamente necessidade. A guinada teve e tem apoio do marido, que a deixa à vontade para tomar as próprias escolhas. Kelly sabe que a situação socioeconômica dela é peculiar, considerando a da população feminina em geral. Justamente por isso, ela acredita que a condição deve pesar mais o motivo e consciência de se tornar dona de casa, apesar de existirem diferentes realidades.
“Eu sou feliz. Foi a melhor decisão. Isso não quer dizer que tenha sido fácil. Há uma pressão do feminismo para que a mulher trabalhe e não dependa de homem. É muito bom estar em casa, poder acompanhar o crescimento da minha filha, cuidar do meu marido e do meu lar. Hoje mesmo, ao observar minha filha brincando enquanto eu lia um livro, eu pensei ‘como eu sou privilegiada e amo minha rotina’. Não sofro com preconceito, mas às vezes escuto comentários de pessoas que nem me conhecem direito como ‘nossa, você deixou tudo para ficar em casa? Que desperdício!’ ”, diz a empreendedora dona de casa.
A socióloga Gabriele Andrade pondera que o problema não é a opção da mulher em atuar como dona de casa, mas a falta de remuneração pela “profissão” que inclui a reprodução humana. Ela considera que a ocupação tem e deve ser valorizada porque repercute tanto ou mais socialmente do que outros trabalhos. A especialista aponta ocorrência da falta de férias, jornada ininterrupta, sem descanso e proteção estatal ao longo da vida. Segundo a profissional, o movimento feminista pressiona pela defesa de direitos trabalhistas e previdenciários. “É importante que as mulheres adeptas do retorno ao lar se deem conta do quão importante é o serviço delas comecem a ser organizar para buscar direitos e remuneração de seu trabalho”, defende.
O peso da idade e necessidades da velhice são realmente duas realidades a serem consideradas pelas mulheres. A advogada Amelina Prado orienta a fazer um planejamento previdenciário. Apesar de não ter carteira assinada, a dona de casa pode contribuir como segurada facultativa para ter acesso à cobertura de benefícios da Previdência Social. Ela explica que há três modalidades: plano convencional, plano simplificado e facultativo de baixa renda.
“Como não há, e em regra, uma atividade remunerada desenvolvida, a mulher acaba deixando, em regra de contribuir também com a Previdência Social, por falta de orientação. Caso a dona de casa não tenha contribuído, ela poderá ter direito a um benefício assistencial, chamado também de Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS), no valor de um salário mínimo e pago pelo INSS, desde que cumpra com algumas regra, como ter mais de 65 anos ou ser pessoa com deficiência, ter uma renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo e ter inscrição no CadÚnico. Já existem projetos de lei que preveem a aposentadoria específica para a dona de casa, mas ainda não foi aprovado”, esclarece a especialista em Direito Previdenciário.
No caso de Kelly, a decisão de sair do mercado de trabalho foi envolta em aspectos racionais e emocionais. A preocupação com o bem-estar dela e dos filhos a incentivou a seguir um caminho relativamente alternativo e ainda desconhecido para muitas pessoas rumo à aposentadoria. “Temos investimentos conjuntos, não acho aposentadoria nos moldes comuns um bom investimento. Tenho bens que no futuro me geraram renda passiva e esse é o foco. Em caso de morte do meu esposo, nós temos um plano de vida que me cobre a mim e à minha filha”, ressalta.