Em El Salvador, os EUA replicaram e refinaram Guantánamo (Por Pedro Guerreiro)
Notas made in USA sobre a vida americana
A Administração Trump deslocalizou e subcontratou um pesadelo carcerário a El
Salvador. É uma nova versão de Guantánamo, a base militar e prisão
norte-americana na ilha de Cuba para onde a Administração Bush atirou aqueles
que quis privar de direitos humanos elementares durante a sua guerra contra o
terrorismo, e que as seguintes administrações democratas não fizeram o
suficiente por encerrar de vez. Como em tantas outras frentes, a protelação ou
desinteresse democrata no desmantelamento de armadilhas, alçapões e vazios
legais ao longo de década e meia deixou agora na mão da segunda Administração
Trump um vasto conjunto de ferramentas para a repressão e para a negação de
direitos. Em Guantánamo, onde restavam em janeiro apenas 15 detidos da era Bush,
cresce agora um novo campo de detenção para imigrantes em situação irregular.
A Casa Branca alega que envia para lá apenas “os piores dos piores” criminosos.
Mas, como em tantas outras histórias das últimas semanas, também se multiplicam
os alertas sobre inocentes apanhados na rede, porque é o que acontece quando se
tenta fazer justiça fora dos tribunais. Permanecem sem contacto com advogados,
sem possibilidade de clamar a sua inocência perante um juiz, e sem perspectiva
de virem a ser libertados.
Ficou Guantánamo, e fez-se escola. O recurso norte-americano a estes buracos
negros, a estes depósitos de vidas humanas em terra de ninguém, é agora
replicado e refinado com a colaboração de El Salvador, a quem os EUA pagam para
receber os tais “piores dos piores”, ou os suspeitos de o serem. Vale muito a
pena ler o trabalho do jornalista norte-americano Philip Holsinger na revista
Time para perceber o que é o CECOT, o gigantesco campo de detenção e de
trabalhos forçados naquele país centro-americano para onde os EUA passaram a
enviar, este mês, sem julgamento, centenas de estrangeiros suspeitos de filiação
a grupos criminosos.
Os cerca de 15 mil reclusos do CECOT, entre os salvadorenhos que já lá estavam e
os latino-americanos agora deportados dos EUA, vivem 23 horas e 30 minutos por
dia fechados em celas, cada uma partilhada com cerca de 80 homens. Dormem
amontoados em beliches metálicos de quatro níveis que mais se assemelham a
prateleiras de um grande armazém, sem colchão, lençóis ou almofadas. Partilham
duas sanitários e duas bacias de água por cela.
Saem apenas para o corredor para trinta minutos diários de exercício físico
guiado, e nunca veem o céu. Não podem receber visitas, nem ocupar o tempo com
nada que não seja a leitura da Bíblia. Comem apenas arroz, feijão e ovos.
Na noite de dia 15, Holsinger assistiu à chegada de três aviões com 261 homens
deportados dos EUA. “Quase todos os detidos apareciam à porta do avião com
rostos zangados e de desafio. Foram os seus rostos que me captaram a atenção,
porque em poucas horas esses rostos seriam completamente transformados”,
escreve. Viu como foram retirados das aeronaves de mãos e pés algemados, como
foram pontapeados e esbofeteados, como os despiram e rasparam o cabelo.
Viu um deles chorar e chamar pela mãe. “Ele dizia, ‘não sou membro de nenhuma
gangue, sou gay, sou barbeiro’. Acreditei nele. Mas talvez apenas porque ele não
se parecia com aquilo que eu esperava – não era nenhum monstro tatuado”, escreve
Holsinger.
O homem que chora pela mãe poderá ser Andrys, um venezuelano de 23 anos cuja
advogada nos EUA nega que tenha qualquer envolvimento com organizações
criminosas. Terá sido visado pelas autoridades norte-americanas pela sua origem
e por ter tatuagens incorretamente identificadas como símbolos de pertença ao
Tren de Aragua, um gangue venezuelano. Ou Francisco José García Casique, um
barbeiro venezuelano reconhecido pela mãe através da televisão. Mas há outros
indivíduos cujos advogados e famílias alegam a sua inocência.
“Mais deles começaram a choramingar; os rostos duros que vi no avião tinham-se
evaporado. Era como se estivesse a olhar para homens que passaram por uma
máquina no tempo. Em duas horas, tinham envelhecido dez anos”, relata Holsinger.
Estas centenas de homens deportados para El Salvador, onde arriscam passar o
resto das suas vidas presos e amontoados, a dormir em prateleiras metálicas e a
comer mistelas, estão por estes dias no centro de uma mediática batalha entre um
juiz federal norte americano, James Boasberg, e a Casa Branca. Foram deportados
à revelia do magistrado, que negou à Administração Trump o recurso a uma lei
arcaica de 1798, o Alien Enemies Act, para expulsar do país, sem o devido
processo legal, estrangeiros suspeitos de serem invasores inimigos.
Boasberg, que enfrenta um pedido de Donald Trump para que o Congresso o afaste,
personifica para já a única esperança, ainda que muito remota, de libertação que
os eventuais inocentes apanhados na rede e levados para El Salvador têm neste
momento. Mas enfrentam um Governo norte-americano que entende que o Presidente
tem um poder virtualmente ilimitado de decisão e acção, e que certos cidadãos
estrangeiros, ou talvez todos, não usufruem sequer de direitos básicos
consagrados pela Constituição.
É certamente difícil empatizar com membros de gangues sanguinários da América
Latina, e é plausível que muitos dos homens deportados para El Salvador sejam,
efectivamente, criminosos violentos. Só que nunca saberemos se é mesmo esse o
caso de todos os deportados, porque os seus processos não foram julgados
cabalmente.
E se o Governo nega direitos elementares a cidadãos estrangeiros porque entende
que não está obrigado pela Constituição a garanti-los, então há também uma
mensagem grave para os próprios norte-americanos: esse Governo só não violará os
direitos dos seus cidadãos porque a leitura vigente da Constituição não o
permite ainda; não por um imperativo moral que o impeça.
Mostra-o Trump, que na sexta-feira escreveu na sua rede social, a Truth Social:
“Mal posso esperar para ver vândalos terroristas doentios levarem com sentenças
de 20 anos de cadeia pelo que estão a fazer a Elon Musk e à Tesla. Talvez possam
servi-las nas prisões de El Salvador, que recentemente se tornaram famosas pelas
suas condições maravilhosas.”
Talvez seja apenas uma piada, esta ideia de enviar também cidadãos
norte-americanos para um gulag fora de fronteiras. Ou talvez El Salvador se
torne numa das maiores manchas do período histórico cada vez mais extraordinário
em que os EUA entraram.
(Transcrito do PÚBLICO)