Valdiram do Vasco: a trágica saga do artilheiro que sucumbiu às drogas

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Aguardem, minha filha: como as drogas deram um fim trágico à vida de Valdiram, artilheiro do Vasco

No confronto entre Vasco [https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/] e Fluminense que está prestes a se iniciar, valendo uma vaga na final da Copa do Brasil, é uma reedição da semifinal de 2006. Naquele ano, um jogador analfabeto do interior de Pernambuco, bom jogador e problemático na mesma medida, decidiu a classificação para o clube de São Januário. Valdiram vivia o auge de uma carreira que seria devastada não muito mais tarde por causa das drogas.

Ele foi o artilheiro da Copa do Brasil, com sete gols — com direito a hat-trick na goleada por 5 a 1 sobre o Iraty, na segunda fase. Renato Gaúcho o escalou como titular na primeira partida da final contra o Flamengo, mas Valdiram não foi sequer relacionado para o jogo da volta porque apareceu embriagado no treino da véspera. O atacante confessou para a família no dia seguinte à decisão vencida pelo Fla que chegou para treinar ainda com um copo de cerveja na mão.

— Nossa, o que eu fiz para aquele rapaz, o que eu ajudei ele… — Renato Gaúcho contou em entrevista ao “Abre Aspas” do ge no ano passado.

— O que ele aprontava… Coisa pesada, então a gente segurava. O Eurico Miranda também foi um pai para ele. A gente segurava, segurava, escondia, segurava, escondia. Cara, para, para, para. Estava dentro dele que ele tinha que aprontar uma todo dia. Não foi fácil segurar o rapaz — completou.

Valdiram teve o contrato com o Vasco rescindido em 2007 e, depois disso, não conseguiu mais parar em um clube. Foram tentativas atrás de tentativas frustradas de se reerguer. O atacante desaparecia e voltava dias depois. Faltava aos treinos ao mesmo tempo em que era frequentador assíduo de bordéis e prostíbulos. Ele perdeu tudo o que tinha dessa forma, foi morar na rua, recebeu ajuda, mas nunca se livrou por completo do vício em cocaína e crack.

A dependência química, primeiro, abreviou a carreira como jogador de futebol. Em seguida, colocou um ponto final trágico na vida de Valdiram. No dia 20 de abril de 2019, ele foi encontrado morto numa calçada da rua Santa Eulália, em Santana, na Zona Oeste da cidade de São Paulo. Ele estava nu, com exceção de uma camiseta preta em volta da cintura, e seu corpo tinha sinais de espancamento.

Nove meses antes, Letícia Morais recebeu um vídeo no seu celular. O pai havia acabado de ter alta da clínica de reabilitação Jorge Jaber, no Rio de Janeiro, e gravou um recado a pedido de Jaider Moreira, seu empresário e amigo. Eles estavam no campo do Olaria, o último clube a abrir as portas para que o atacante ex-Vasco tentasse se recuperar.

Meses antes de morrer, Valdiram mandou recado para os filhos: “Vamos viver juntos de novo”

O ge encontrou Letícia, que hoje tem 22 anos e vive em Petrolândia, município no sertão pernambucano que fica a 410 quilômetros de distância da capital Recife e a 292 quilômetros de Canhotinho, cidade-natal dos seus pais. A filha mais velha de Valdiram, a quem se refere como “melhor pai do mundo”, permitiu a publicação do vídeo e também cedeu diversas imagens que foram usadas ao longo da reportagem.

— Hoje em dia eu sinto muita falta dele. Jamais imaginaria que isso iria acontecer tão cedo, sabe? Se eu pudesse voltar no tempo e impedir esse acontecimento, eu faria o possível para mudar isso. Eu amo muito ele, e isso nunca, jamais, vai mudar — garantiu em conversa com o ge.

A polícia de São Paulo, por meio de um inquérito conduzido pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), em junho 2019, indiciou quatro pessoas por envolvimento no assassinato de Valdiram, todas em situação de rua. O ex-jogador do Vasco tinha escoriações por todo corpo, com lesões concentradas na cabeça e na região dorsal. A causa da morte foi traumatismo crâniencefálico.

Os exames toxicológicos acusaram positivo para álcool etílico e para as substâncias benzoilecgonina, ecgonina e éster metil ecgonina, produtos da biotransformação da cocaína.

Laudo pericial mostra hematomas e escoriações na região dorsal do corpo de Valdiram, morto em abril de 2019

À polícia, dois dos quatro acusados contaram que presenciaram Valdiram abusando sexualmente de uma criança de três anos, num conjunto de barracas onde ele e outros moradores de rua viviam, sob o viaduto da Avenida Cruzeiro do Sul. Eles confirmaram que houve espancamento, mas disseram que tiraram o ex-jogador de perto para evitar um linchamento e o deixaram, consciente e com vida, na calçada da Santa Eulália.

Em seguida, se dirigiram de volta para as barracas e viram os outros dois acusados caminhando na direção de Valdiram com pedaços de pau nas mãos.

Com um pedaço de pau na mão, Andrei Heberton foi condenado a 12 anos de prisão pelo assassinato de Valdiram

Presos preventivamente desde o indiciamento, os acusados foram levados a júri popular em fevereiro de 2022. O júri decidiu, por maioria de votos, pela absolvição de três deles. O quarto, que confessou ter sido o autor dos golpes fatais, foi condenado a 12 anos de prisão por homicídio duplamente qualificado. Andrei Heberton da Costa Oliveira, de 49 anos, encontra-se na Penitenciária de Andradina — em maio deste ano, teve concedido o direito à progressão de pena e passou para o regime semiaberto.

Familiares e pessoas que foram próximas de Valdiram ouvidas pelo ge contestam a hipótese de que o ex-jogador teria abusado de uma criança. Eles disseram que Valdiram tinha dificuldade de se controlar perto de mulheres, em especial sob efeito de entorpecentes; que ele apresentava traços de sociopatia e não demonstrava sentimento de culpa; mas que nunca, em hipótese alguma, enxergaram indícios de pedofilia.

Por e-mail, a assessoria da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou apenas que os acusados “alegaram ter cometido o crime em razão de uma suposta violência sexual praticada pela vítima contra a filha de três anos de um deles”. O ge questionou se foram realizados exames na criança e se as investigações confirmaram a prática do abuso sexual, mas não houve resposta.

Valdiram Caetano de Morais é filho de um dos pedreiros mais conhecidos de Canhotinho, no interior de Pernambuco. Mas se deu conta cedo de que não levava jeito para obras. Quando o filho completou 12 anos, Seu Valte começou a tentar levá-lo para o serviço, mas o pequeno Valdiram só queria saber de jogar futebol.

— Ele já nasceu com dom de futebol de Deus. Eu botava ele para trabalhar, mas eu via que o dom dele não era para trabalhar. Quando dava 14h, 15h da tarde, ele dizia “pai, vou embora para o treino, quero jogar bola”. O negócio dele era só bola — contou Valte, com a ajuda de um dos filhos, o Wagner, para atender o ge por telefone.

A mãe de Valdiram e de suas três irmãs morreu vítima de um tumor cerebral quando ele era novo. O pai assumiu outro relacionamento e teve mais duas filhas e um filho, o que dá um total de seis irmãos. Família grande e humilde. Mas a comida nunca faltou, com exceção de um período em que Valte teve dificuldades para encontrar serviço em Canhotinho.

Valdiram passou numa peneira do CRB quando tinha 14 anos e foi viver sozinho em Maceió. Na época, o pai fazia o possível para dar o suporte nos primeiros passos da carreira do filho enquanto lutava para sustentar o restante da família. Menos de dois anos depois, ele assinou seu primeiro contrato profissional e passou a receber um salário.

> “Ele ajudou a família todinha. Mesmo com o pouco que estava ganhando naquele tempo, ele conseguiu ajudar a família. Ele sempre teve o coração bom, por mais que surgiram reportagens…”, contou Wagner, incomodado com a imagem que ficou do irmão após as polêmicas na carreira.

Renato Gaúcho reuniu os jogadores no campo antes de começar o treino e explicou os planos de poupar alguns titulares no Carioca de olho no compromisso da Copa do Brasil. Por fim, perguntou se alguém tinha algo a dizer. No que Valdiram levantou a mão:

— Como faz com essa torcida que quer ver eu mais Edílson jogar?, indagou de maneira inocente, provocando risos.

Renato Gaúcho revelou em entrevistas que Valdiram chegava atrasado com frequência aos treinos, não raramente embriagado. O clube aplicava multa, mas o ato se repetia poucas semanas depois. Wagner, o irmão do atacante, contou ao ge que Eurico Miranda ligou pessoalmente para o pai sugerindo que ele se mudasse para o Rio de Janeiro. “Nem eu consegui tirar ele da noite”, lamenta com dor na voz Seu Valte, que viveu com Valdiram por cerca de sete meses no Rio.

A paciência de Renato Gaúcho e do clube foi minguando à medida que a indisciplina tornava-se mais recorrente e a quantidade de gols diminuía. A gota d’água foi o episódio na véspera do segundo jogo da final da Copa do Brasil. O Vasco foi o clube em que o atacante mais atuou na carreira: 29 partidas e 13 gols.

O gaúcho Rogério Braun era um dos empresários que gerenciavam a carreira de Valdiram na época. Depois da rescisão com o Vasco, eles engatilharam acordo com um clube de Israel, mas descobriram que o atacante de alguma forma havia se vinculado ao Bonsucesso, do Rio. Rogério considerou o ato uma traição e largou a mão do jogador.

— Ele no início não tinha nada, eu que fui comprar chuteira, aluguei apartamento pra ele no meu nome, criamos toda estrutura. A gente fez tudo que podia. Foi um período muito curto e intenso. Depois eu entendi que nunca ia conseguir controlá-lo. Ao mesmo tempo em que, na convivência, ele era divertido, era impossível cuidar. Ele era um ser humano deteriorado — lamentou em conversa com o ge.

Valdiram aceitou o contrato com o Bonsucesso e foi com Jaider até o banco para retirar as luvas. Em seguida, o empresário deixou o jogador e sua mala de dinheiro na porta de casa.

Era uma terça-feira. Eles combinaram de se encontrar novamente na sexta para viajar para São Paulo e assinar por empréstimo com o Ituano. No dia seguinte, quarta-feira, Jaider recebeu uma ligação de Fernanda, esposa do atacante.

— Seu Jaider, sabe onde está o Valdiram?

Ele havia desaparecido com os R$ 30 mil ainda na terça e só voltou a dar as caras na quinta, de ressaca e sem um centavo sequer. A pergunta de Fernanda seria feita a Jaider outras inúmeras vezes nos anos seguintes. No Ituano, por exemplo, Valdiram não durou uma semana: foi devolvido depois de faltar aos treinos e ser encontrado em um bordel.

Fernanda saiu de casa com os dois filhos em 2009, quando Valdiram tentava se reerguer no CSA, e não voltou mais. A gota d’água foi a vez que ele chegou em casa de manhã, molhado de água salgada, descalço e vestindo apenas uma bermuda. Visivelmente havia virado a noite bebendo e se drogando. Ele pediu dinheiro emprestado para pagar a dívida com um rapaz que aguardava na recepção do prédio, e ela pagou.

Depois disso, Fernanda criou sozinha as crianças, sem pensão ou qualquer tipo de auxílio. Quando Valdiram morreu, ela conseguiu (depois de muita luta, pois nunca foram oficialmente casados) sacar R$ 10 mil do FGTS do ex-marido e dividiu o dinheiro entre os dois filhos.

— Às vezes tinha (discussões), porque a gente sente ciúme, na pele. Queira ou não, a gente estava junto. Para ele, a gente era casado, eu era a esposa dele. Ele podia sair para a farra que fosse, ele voltava para casa. No outro dia, que estava em si, me pedia desculpa, dizia que ia mudar, tentava, mas depois caía de novo em tentação. Ele não conseguia se controlar — explicou Fernanda, que hoje é garçonete em um restaurante de Petrolândia.

— Eu vinha de uma criação muito rígida, meu pai sempre me cuidou como uma bonequinha de cristal. Mas quando a gente quer não tem quem impeça, parecia ser uma coisa que eu tinha que ajudar da maneira que eu podia, mas não adianta ajudar uma pessoa que não quer a sua ajuda. Mesmo assim eu insisti — acrescentou.

Fernanda chora até hoje. A relação entre Jaider Moreira e Valdiram durou muito mais do que os três anos de contrato firmados com o Bonsucesso em 2007. O empresário virou uma espécie de pai. Quando o atacante aprontava, é para ele que ligavam. “Oh, acabei de ver o Valdiram lá na Avenida Brasil, hein”. E Jaider ia pela milésima vez buscá-lo.

— Uma vez eu tive uma conversa com ele e falei ‘Valdiram, eu já desisti, eu não quero mais ganhar dinheiro com você, eu só quero te ajudar’. Aquele dia me bateu esse sentimento, eu tinha tido um sonho — disse o empresário, que largou o futebol depois de um tempo para investir no ramo imobiliário e de confecção de roupas. Ele estima ter gastado cerca de R$ 500 mil nos anos em que tentou ajudar Valdiram.

— Ainda hoje eu choro muito. Ele me deu casa, tem uma igreja aqui que foi feita com o dinheiro dele. Me deu carro, deu uma moto para o cunhado, ajudava a família todinha. Foi um bom filho pra mim. Eu tenho orgulho dele — concluiu.

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