Xeroderma pigmentoso: entenda por que povoado em Goiás concentra um dos maiores grupos de portadores da doença rara no país
Comunidade de Araras convive há gerações com uma condição genética que torna os moradores até mil vezes mais vulneráveis ao câncer de pele. Entre perdas e conquistas, famílias resistem com união, fé e esperança em novos tratamentos.
Xeroderma pigmentoso
Uma década após a primeira reportagem do DE revelar a alta concentração de casos de xeroderma pigmentoso (XP) em Araras, um dos maiores agrupamentos conhecidos da doença em um único povoado — a rotina na comunidade segue marcada por cuidados extremos com a luz, tratamento contínuo e mobilização coletiva.
Araras é um povoado rural que pertence ao município de Faina, no noroeste de Goiás. Ele fica a 40km da sede do município e tem cerca de 600 moradores. Foi ali, em uma comunidade marcada por laços familiares antigos e repetidos casamentos entre parentes, que os primeiros casos de xeroderma pigmentoso começaram a aparecer gerações atrás.
Hoje, 16 pessoas convivem com o quadro clínico da doença e mais de 100 carregam a mutação genética, ainda sem sintomas. O diagnóstico, tardio para muitos anos, revelou uma realidade que passou invisível por gerações: famílias inteiras com o mesmo gene alterado, fruto de um passado de casamentos consanguíneos e isolamento geográfico.
“Aqui a convivência é natural, mas o preconceito ainda existe”
A ex-presidente da Associação Brasileira do Xeroderma Pigmentoso, ABRAXP, Gleice Francisca Machado, acompanhou de perto essa transformação. Mãe de um jovem de 22 anos diagnosticado com XP, ela presidiu a entidade por 12 anos — tempo suficiente para ver o medo dar lugar ao acolhimento, e a desinformação, ao cuidado.
Luiz Carlos, também portador de xeroderma pigmentoso, vive a realidade de quem precisa evitar a luz e lidar com as limitações impostas pela doença.
“Hoje eles têm um conhecimento maior sobre como lidar. Aqui, entre nós, é natural. Ninguém mais acha que é contagioso. Mas fora daqui, ainda há preconceito. O rosto é o lugar mais afetado, e as marcas acabam falando primeiro.”
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Gleice explica que os pacientes tentam levar uma vida normal, mas a rotina é limitada. Muitos não estudam, não trabalham fora e passam o dia dentro de casa.
“A doença judia. Quem tem ferida, quem sente dor, sabe o que é esperar. E mesmo quando há tratamento, o processo é dolorido, caro, lento.”
Seu filho, que abandonou os estudos e enfrenta depressão, simboliza um desafio silencioso: o impacto emocional de uma condição que exige não apenas resistência física, mas também social e psicológica.
Agricultor Deide Freire. Seu rosto foi deformado por retirada de tumores.
“É uma luta por dignidade, não só por tratamento”
A Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso surgiu em 2009, quando o diagnóstico coletivo começou a ser compreendido. Desde então, as conquistas vieram em passos lentos, muitas vezes garantidas na Justiça.
“A principal luta hoje é pela imunoterapia gratuita e pela cirurgia de Mohs no SUS”, diz Gleice. “São procedimentos que evitam novas mutilações e recidivas, mas o acesso ainda é judicializado. É um sofrimento que poderia ser evitado.”
Ela também cita promessas não cumpridas — como uma escola e uma unidade básica de saúde que deveriam ter sido inauguradas em 2014 — e ressalta que a sobrevivência das famílias depende da continuidade das políticas públicas.
“Não basta ter uma estrutura adaptada. Falta tratamento, acompanhamento, acolhimento. É uma comunidade que vive de superação, mas que ainda espera ser plenamente reconhecida.”
Cláudia Sebastiana mostra pele escura por causa do xeroderma pigmentoso.
A NOVA LIDERANÇA E A ROTINA QUE O SOL DITA
Desde 2023, a presidência da associação está nas mãos de Maria Darcy, também portadora. Ela assumiu o cargo motivada pela vontade de preservar a causa dentro da própria comunidade.
“Se eu não assumisse, cairia nas mãos de quem não conhece a nossa luta. A gente vive isso todos os dias.”
Maria Darcy mora em outro distrito de Faina, mas mantém contato constante com as famílias de Araras. Conta que a associação conquistou a cobertura da quadra da escola, a construção de 50 casas populares, um veículo para transporte dos pacientes e a renovação de convênios que garantem protetor solar para 120 famílias. Ainda assim, a estrutura segue precária.
Alisson convive com o xeroderma pigmentoso desde a infância.
A EXPLICAÇÃO DA CIÊNCIA E OS 15 ANOS DE ACOMPANHAMENTO DA DRA. SULAMITA
Desde 2010, a dermatologista Sulamita Costa Wirth Chaibub acompanha o grupo. Coordenadora do atendimento no Hospital Geral de Goiás por sete anos, ela continua ligada à associação como consultora científica. Para ela, o maior avanço não foi tecnológico, mas humano: o entendimento da doença e a aceitação social.
“Quando cheguei, mais de 30 pessoas já haviam morrido sem diagnóstico. Eles não sabiam o que tinham. Achavam que fosse uma herança de antepassados ou até algo contagioso. Hoje sabem o nome, a causa e o que precisam evitar. Isso muda tudo.”
A médica explica que o XP é causado por falta de uma enzima que repara os danos do DNA provocados pela luz solar.
“Todos nós sofremos pequenas queimaduras de sol, mas o organismo repara. No xeroderma, essa correção falha. O dano se acumula e vira câncer.”
Em Araras, o tipo predominante é o XP variante, que permite alguma reparação, mas não o suficiente para reproduzir células normais. Por isso, os cânceres aparecem cedo, e em alguns casos, de forma agressiva.
“Eles eram lavradores, trabalhavam sob o sol de Goiás, uma das regiões mais quentes do país. Agora vivem praticamente de portas fechadas. O ganho foi entender que o cuidado é também uma forma de liberdade.”
ENTRE CONQUISTAS E ESPERANÇAS
Ao longo de 15 anos, a equipe de Sulamita, em parceria com a associação e entidades como a Sociedade Brasileira de Dermatologia, organizou mutirões periódicos em Araras. Médicos cirurgiões atendem e operam os pacientes no próprio povoado, o que evita longos deslocamentos e reduz filas de espera.
Os moradores também recebem protetor solar gratuito, roupas com proteção UV e acompanhamento especializado.
“Hoje, cinco deles já usam imunobiológicos, medicamentos de ponta que evitam a progressão do câncer. Não é cura, mas é um avanço. E o futuro está na terapia gênica, que um dia poderá corrigir o DNA defeituoso.”
A médica reforça que o acolhimento é parte do tratamento:
“Eles devem ser vistos como cidadãos comuns que vivem com uma doença grave — e não como uma exceção. O preconceito ainda existe, mas já não define quem eles são.”
SOMBRAS, CUIDADO E ESPERANÇA
Para as crianças, o isolamento é uma das faces mais duras da doença. Elas estudam em horários adaptados e brincam apenas quando o sol se põe.
“Há muito tempo pedimos uma quadra coberta, para que elas possam correr e brincar. São crianças normais, só não podem estar sob o sol”, lamenta a médica.
A rotina em Araras é marcada por cuidados, mas também por afeto e solidariedade. Famílias que antes viviam escondidas hoje dividem histórias, trocam experiências e se reconhecem como parte de algo maior.
“A comunidade se supera todos os dias. Aprendeu a resistir sem perder a esperança”, resume Gleice.
Hoje, mesmo com avanços no tratamento e no entendimento da doença, Araras ainda depende da solidariedade entre os próprios moradores e do olhar atento de quem vem de fora. Lá, onde a luz ainda representa risco, o que mantém a vida possível é o cuidado mútuo, e a esperança de que a ciência e as políticas públicas caminhem tão rápido quanto o tempo que o sol demora a nascer.




