Zeca Pagodinho, quem diria, foi parar num cruzeiro em alto-mar
Não imaginava o moço de Del Castilho e Xerém fazendo show em um transatlântico.
Nem combina muito com ele. Mas simbora – Zeca chamou, eu vou
Nunca quis fazer cruzeiro em alto-mar. Meu oceano é um rio que corta a floresta amazônica do pôr ao nascer do sol. Mas a oportunidade era irrecusável: o Navio do Zeca [https://www.m.code/-pagodinho]. Não imaginava o moço de Del Castilho e Xerém fazendo show em um transatlântico. Nem combina muito com ele, está mais pra sertanejo e Roberto Carlos, mas simbora – Zeca chamou, eu vou.
Paguei em nada suaves prestações o ano inteiro, sem imaginar que uma cerveja long neck no navio custaria 7 dólares ou, como diz meu filho, 42 dinheiros, meu suado dinheirinho.
Lá fomos nós, quatro amigas, entre 66 e 80 anos. A ideia que tenho de viagens náuticas é das pequenas embarcações nas quais subo e desço o Amazonas desde muito bebê. Esses navios de cruzeiro estão em outra dimensão. Era como se eu tivesse saído da escala da formiguinha para a escala do dinossauro no tamanho e na distinção entre o que é real e o que é fantasia. E esses transatlânticos são uma delirante alegoria da inalcançável riqueza.
A ideia de estar ilhada com o Zeca Pagodinho [https://www.instagram.com/zecapagodinho/?hl=pt-br] – expressão encantadora da alma suburbana carioca – faz a gente imaginar que o ídolo ficará ao nosso alcance na escala humana. Vi o Zeca fora do palco apenas uma vez, casualmente, quando ele atravessou o convés, nas bordas do navio, quase anônimo.
No que dependeu de mim, continuou anônimo. O Zeca que me interessa é aquele que subirá ao palco para um show magnífico, o melhor dos vários dele que já vi. Parecia bem à vontade, como se estivesse debaixo da tamarineira, nos anos 70, quando se aproximou das rodas de samba do Cacique de Ramos.
Foi um show compacto e afinado. Zeca bebia vinho, não mais do que cinco goladas nas quase duas horas, conversava com os parceiros de palco, dava oi pra quem reconhecia no público e brincava com a oscilação do navio (“nem tô balançando”).
O melhor de tudo, porém, não foi o Zeca, nem os músicos que o acompanham desde muito, dentre eles o quase enigmático Paulão 7 Cordas. Foi o público, uma classe média do samba, uma razoável quantidade de negros entre eles, que sabia cantar do começo ao fim as letras até mesmo das músicas menos conhecidas da playlist quarentona do Zeca.
Consegui ficar a uns cinco metros do palco e me vi tentando descobrir o segredo que nem ele mesmo conhece – o que faz do Jessé Gomes da Silva Filho o Zeca Pagodinho? Essa quase unanimidade brasileira. Até quem não gosta de samba gosta do Zeca.
Naquele carioca nascido e criado na Baixada Fluminense há uma fonte de água límpida, algo que permanece em estado de nascimento. Parece que o Jessé segue do mesmo jeito desde que tomou consciência da própria existência. E seguiu do mesmo jeito depois que virou Zeca Pagodinho, fiel a si mesmo, como se já tivesse nascido pronto.
Quando cantou “cuida de mim, porque você é o mais real dos sonhos meus” (Mais Feliz, de Toninho Geraes), Zeca acrescentou “cuidem de mim”, como quem pede o que tem recebido há quatro décadas.
Caetano Veloso disse certa vez: “Zeca Pagodinho é o Rio de Janeiro inteiro”. Jessé não é o Brasil inteiro, porque nada nem ninguém consegue sintetizar um país tão múltiplo, diverso, imenso, colorido e desigual. Mas o Zeca com seu dente de ouro e sua barriga de cerveja é a expressão de um Brasil que saiu da Bahia e subiu os morros do Rio de Janeiro para inventar a mais malemolente, apaixonada, maliciosa e poética expressão da alma brasileira, o samba.
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