Mais do que a lei do ex, a eliminação do Fluminense tem a marca da lei do mais rico
Torcedor tricolor deve lembrar com carinho das tardes desta Copa do Mundo, em
que o time fez sua gente se orgulhar
A Fifa criou um produto atraente, com confrontos intercontinentais que raramente
o calendário abarrotado do futebol permite, clubes disputando um torneio em
formato de Copa do Mundo, choques entre camisas tradicionais, a presença de
Messi… E, no fim, ainda que o Fluminense, notável protagonista da grande
história do torneio, tenha alcançado as semifinais, a nova Copa termina com o
cenário imaginado e com a mesma sensação que o futebol globalizado nos transmite
de forma cotidiana nas últimas décadas: o abismo econômico dita o rumo do
resultado esportivo. E, esta patologia do jogo atual, nem a Fifa, nem qualquer
agente capaz de deliberar sobre os rumos do futebol, encontrou formas de
combater.
Haverá uma final europeia, definida após uma semifinal desequilibrada na maior
parte do tempo e cujo roteiro, por um desses caprichos do futebol, terminou por
realçar o papel do dinheiro na ordem internacional do futebol global. João
Pedro, único jogador formado pelo Fluminense a iniciar a semifinal – Martinelli
estava suspenso -, é um típico caso do mercado atual de jogadores de futebol:
destaque na base, foi vendido ao Watford ainda menor de idade, e permaneceu no
tricolor numa contagem regressiva para a despedida, prevista para quando
completasse 18 anos. Hoje, cinco anos depois, vestia a camisa do Chelsea, que
dias antes do confronto com o Fluminense pagou R$ 400 milhões para tirá-lo do
Brighton. Este dinheiro, gasto pelos ingleses numa única contratação, é 60% de
todas as receitas obtidas pelo Fluminense, somando todas as suas atividades, ao
longo do ano de 2024.
DE 0 x 2 Chelsea | Melhores momentos | Semifinal | Copa do Mundo de Clubes 2025 [https://s01.video.glbimg.com/x240/13742076.jpg]
DE 0 x 2 Chelsea | Melhores momentos | Semifinal | Copa do Mundo de
Clubes 2025
Há quem chame os gols de João Pedro de “lei do ex”. Também é possível chamar de
“lei do dinheiro”. Qualquer que seja o formato dos próximos mundiais, das
próximas Copas do Mundo de Clubes, eles sempre acontecerão sob a sombra da
desigualdade. E ainda que um sul-americano, africano ou asiático consiga
progredir, algo que é próprio de torneios em mata-mata com suas
imprevisibilidades, não é saudável que equipes de todos os continentes cheguem
aos torneios como desafiantes. A globalização criou supertimes que são atrações
sob medida para o futebol conquistar mercados, fazer o chamado “dinheiro novo”.
Mas o efeito colateral é transformar clubes de escolas tradicionais, a nova
periferia do futebol, em meros fornecedores do pé de obra para as potências
globais.
E aqui cabe um parêntese. Clubes brasileiros, lado frágil do abismo econômico em
disputas intercontinentais, são o lado opressor desta mesma patologia do jogo
ano após ano na Libertadores. A cada temporada, tiram dos rivais sul-americanos
os melhores jogadores que a Europa não consumiu.
Diante da desigualdade global, o Fluminense construiu uma grande história. A
cada etapa da Copa do Mundo, o que estava diante dos tricolores era testar os
limites da superação. No antigo formato do campeonato, tratava-se de tentar a
sorte em um jogo, em 90 minutos de um desafio à potência europeia da vez. Agora,
é preciso desafiar a lógica em jornadas consecutivas, um esforço que cobra um
preço. Em algum momento, o limite se apresenta.
Quanto ao jogo, Renato Gaúcho, dono de tantos acertos ao longo da Copa do Mundo,
tinha muitos motivos para repetir o sistema com três zagueiros. O time parecia
confiante na fórmula, bem acomodado nela. Mas o jogo apresentou desafios
diferentes do que impuseram Inter de Milão e Al Hilal. O Chelsea também tinha,
em seu desenho, cinco ou seis homens na linha ofensiva, algo que, em tese,
justificava a linha de cinco defensores tricolores. Mas Nkunku e João Pedro
recuavam para buscar a bola no meio-campo e trocar passes com Caicedo, Enzo
Fernández – os dois brilhantes no jogo -, além de Palmer e dos zagueiros que
saíam jogando.
Renato definira bem seus encaixes de marcação, com Bernal em Palmer, Thiago
Santos em Nkunku, Hércules em Enzo Fernández, enquanto Arias e Cano vigiavam
Chalobah, Adarabioyo e Cucurella na saída de bola. Ocorre que, quando Nkunku
vagava pelo meio-campo ou entra as linhas de volantes e defensores do tricolor,
Thiago Santos duvidava se deveria persegui-lo ou recompor a linha de defesa. O
mesmo ocorria com Thiago Silva ou Ignácio contra João Pedro. Assim, o Chelsea
criava superioridades no meio e progredia. O Fluminense não encaixava a marcação
como nos jogos anteriores.
E ainda havia mais questões: Guga perdia seguidamente os duelos diretos com Pedro
Neto, escalado na esquerda desta vez; já a pressão do Chelsea nos 25 minutos
iniciais provocava perdas de bola seguidas. Duas delas, de Cano, resultaram em
chances, inclusivo o primeiro gol de João Pedro.
O Fluminense andou perto de sua identidade de jogo na parte final da primeira
etapa, quanto teve o seu momento na partida. Contra um Chelsea menos intenso,
talvez pelo calor, o tricolor criou aproximações, triangulações, Cano trabalhou
como pivô e Hércules esteve a centímetros de empatar o jogo. Em seguida, o
árbitro voltou atrás na marcação de um pênalti.
Jogos de futebol, por maior que seja a superioridade de um lado sobre o outro,
quase sempre têm momentos que podem mudar toda uma história. Ir para o intervalo
com o empate poderia ser uma destas ocasiões para o Fluminense. Não aconteceu. E
o segundo tempo foi de muita imposição dos ingleses. Após minutos iniciais de
mais pressão do Chelsea e algumas boas chances, Renato tentou soltar o time. E
as circunstâncias foram cruéis. Na primeira vez que o tricolor se estabeleceu no
campo de ataque, com muita gente perto da área defendida pelo Chelsea, uma bola
perdida resultou no 2 a 0 de João Pedro. Porque a lei do dinheiro também é sobre
isso: de um lado, estão jogadores com uma qualidade técnica que os faz
aproveitar melhor as chances.
O Fluminense também pôde lamentar as perdas de Martinelli e Samuel Xavier, que
teriam sido importantes no jogo. Na prática, o Chelsea tem um time melhor. E o
jogo deixou isso claro. Ainda que a caminhada tenha terminado com uma derrota,
este é o momento de o torcedor tricolor lembrar que o futebol não pode valer a
pena somente quando, no fim da trajetória, existe um troféu. Entre junho e julho
de 2025, foram algumas as tardes em que o Fluminense fez sua gente se orgulhar.
E isso também faz o futebol valer a pena.