Por que as “saidinhas de Natal” debocham do cidadão brasileiro

Acabei de ler a notícia de que nesta terça-feira, 22, Suzane von Richthofen deixará a Penitenciária Maria Eufrásia Pelletier, no interior de São Paulo, para mais uma das famosas “saidinhas” de Natal e Ano Novo. Para quem não se lembra do caso, ela foi presa em 2002 por matar os pais e ficará em liberdade até o dia 5 de janeiro.

Com ela, outros 33 mil devem ser liberados somente no estado de São Paulo, com permissão de João Dória. Mas você, que nunca cometeu crime, por favor: fique em casa e não saia neste Natal! Dória já se defendeu, e disse que a decisão é da Justiça, e não dele. Então, que não prometesse acabar com a prática durante sua campanha, em 2018. Admiro Dória pelo contorcionismo verbal: cheio de contradições, passeia como “barata tonta” diante dos eleitores e continua voltando para casa como governador.

Você que lê, procure notícias sobre “saidinhas de Natal” e veja só os comentários do povo. Veja se estou mentindo: o “benefício”, amparado por lei (7.210/1984), soa como piada para a maioria esmagadora dos brasileiros. “Ela saiu para visitar a família!”, li alguém comentando na notícia de Suzane.

É bom lembrar algumas coisas antes de prosseguir: só os que cumprem pena em regime semiaberto é que podem sair, até 4 vezes por ano, depois de cumprirem 1/6 da pena. Pasmem: essas ‘saidonas’ (como prefiro chamar) podem durar até sete dias. Quatro vezes por ano, sete dias por vez: 28 dias fora da cadeia (ou um mês de fevereiro).

Se você ainda não entendeu o absurdo, aí vai outra comparação: na Itália, há poucos dias, o governo decretou que cada pessoa só poderá sair de casa uma vez para uma visita, no dia do Natal. Quem tem mais liberdade? Suzane Von Richthofen, ou qualquer italiano em lockdown?

Pessoalmente, acredito no poder do perdão. Não duvido nem nunca duvidei na possibilidade de arrependimento e remissão da moça que matou os pais, ou de qualquer outro criminoso. Torço para isso.

Mas, qual o recado que a Justiça brasileira dá à criminalidade? “Saia no Natal”, “cumpra somente 1/6 da pena”, “tenha cela especial por ter estudado mais”, ou ainda: “se for rico, pague sua fiança e saia daqui!”. Este é o motivo de tanta violência, morte, dor e crime que assusta e sempre assustou o Brasil: não há Justiça.

Uma canção antiga tem o verso: “em terreiro sem galo, quem canta é frango e franguinha!”. Talvez, se o crime não fosse facilitado, mas temido, todo criminoso pensaria duas vezes antes de assaltar você, leitor. Quantas mortes teríamos a menos por ano se a lei fosse forte no país? Quantas pessoas você ainda teria a seu lado se tivéssemos um código isento de privilégios?

Todos temos que arcar com as consequências das nossas atitudes. Tenho pena de presidiários? Sim, eu tenho. E daí? É completamente possível se compadecer do outro e permanecer reto com a Justiça. É doloroso, mas é a realidade com a qual devemos lidar. Não deixe que ninguém te pinte como um ‘monstro’ quando apenas defende o cumprimento da Justiça! Quem não compreende essa dualidade, entre Justiça e Misericórdia, não está pronto para discutir nada sério na vida.

Imagem: TV Record

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A crise moral da nova geração de médicos

Médico com máscara.

Por: SARA ANDRADE

Uma jornalista jovem de classe média tem livre circulação nos ambientes frequentados por pessoas com histórias relativamente parecidas: vivendo dentro dos seus vinte anos, formando-se na faculdade e começando carreiras no mercado de trabalho. Nesta bolha, destaca-se a quantidade de moças e rapazes que optaram pelo estudo da medicina.

Estão aí para provar as estatísticas: de 2000 para 2020, o número destes profissionais no Brasil mais que dobrou, passando de 230 mil para meio milhão, segundo resultados do estudo “Demografia Médica no Brasil 2020”, liberado pelo Conselho Nacional de Medicina em parceria com a Universidade de São Paulo.

As milhares de entregas de canudo, tão comemoradas, foram responsáveis por alargar a média de médicos a cada mil habitantes no país: de 1,4 para 2,4, colocando o Brasil no mesmo patamar de nações como Japão ou Polônia, e apenas décimos atrás dos Estados Unidos, com média de 2,6. O que os números não podem mostrar, no entanto, são os pormenores deste fenômeno. Aqui vale o ponto de vista de uma jovem jornalista, e o cenário não é tão simples quanto parece.

A medicina sempre carregou consigo seu bocado de nobreza. Curar doenças, tirar a dor das pessoas, aumentar o tempo e a qualidade de vida: de fato, o jaleco branco pode ser uma espécie metafórica de batina, numa profissão quase sacerdotal, sagrada. Não seria falta de noção falar até em “amor ao próximo”. Muitos jovens estudantes parecem ter esta ideia romântica em mente: ajudar as pessoas através do trabalho de suas vidas. Não é só um emprego: torna-se missão e vocação.

Enquanto isso, outros estudantes de medicina parecem perdidos pelo caminho. Atenção: este é um questionamento aos que em breve serão médicos! Você está verdadeiramente preparado para abrir mão de si, dos seus desejos e caprichos, em prol de um desconhecido? Muitas vezes, seus pacientes serão “impacientes”, inoportunos e sem educação (até porque podem estar sob o efeito de grande dor).

Você pode não ser agradecido, nem reconhecido ou elogiado. Quem sabe até injustiçado. Pense consigo, você pode suportar? Você quer suportar? A sua escolha deve ser como em um casamento: o padre sempre avisa da riqueza e da pobreza, da saúde e da doença: quem diz sim, o diz para tudo.

Com o prestígio do ofício, vêm os abutres. Quantos não estão cursando medicina pelo status social, pelo dinheiro prometido, ou ainda apenas pela experiência da vida festeira de universitário? Tudo isso pode estar no pacote, caso o amor também se faça presente. Sem amor primeiro, é tudo vazio neste coração de doutor. Assim, a indagação martela nas mentes: como um universitário interesseiro e exibido, que nunca se doou a nada, nem a ninguém, pode ser um bom médico? De onde tirará o amor que tudo suporta, que persevera? Ninguém pode dar o que não tem.

Seria possível que um estudante qualquer de medicina, na condição de escravo de aprovação, de likes em redes sociais, incapaz de reconhecer o esforço da família para formá-lo, que só se importa em figurar bem para os amigos nos ambientes sociais… seria possível que disso saia altruísmo, doação e abnegação de si? Doar-se não é lá tão impossível e atos como arrumar a própria cama já são ótimos sinais de ordem interior. A disciplina, a sinceridade, a submissão aos superiores, tão necessárias no dia a dia do médico: tudo isso começa pequeno, mostrando-se no dia a dia do estudante.

Se você não sente obrigação nenhuma para com ninguém, se o mundo inteiro (seus amigos, pais) está sempre errado e você certo, ou se a culpa de seus fracassos, ou más ações, nunca é sua, pobre vítima… falta-te o principal para ser um bom médico: o amor. E este só vem com maturidade, com a compreensão de que sua vida não é para você se entupir de si mesmo, mas um presente ao mundo: ao tiozinho da esquina que sofre, à criança resfriada e à fofoqueira insuportável do bairro. Desse modo, seus dias ganharão um sentido maior.

Muitos reduzem o sucesso na vida ao sucesso profissional. Nada mais equivocado! Quantos não são fracassados com contas bancárias gordas? Isso acontece porque sucesso verdadeiro é ter personalidade, maturidade. E isso só se alcança com consciência moral, que diferencia bem e mal, e que gera noção de dever. Mas o que será de uma geração de jovens médicos que tem horror à própria ideia de moralidade? De ordem? Ou com uma dificuldade imensa de compreender a necessidade de regras, de ritos… Serão eles ricos? É possível. E também miseráveis, porque imaturos e sem personalidade. No fim, ninguém é feliz assim, ou cumpre seu chamado no mundo, sua vocação.

Aliás, o que levaria um jovem médico a doar-se por alguém? Sem sombra de dúvidas, a certeza da dignidade da vida humana, e o conhecimento da sua transcendência. Infelizmente, esta geração tem receio até mesmo de dizer que uma vida humana vale mais que a vida de um papagaio, ou de uma lesma. Como amar o humano, se não se sabe o que ele é, ou quanto vale? Ingênuo pensar que um estudante imaturo e incapaz de amar tornaria-se imediatamente amoroso e dedicado pelo toque mágico do diploma em suas mãos.

Essa dinâmica se aplica a todas as profissões, mas o médico deve ser o primeiro da fila a entender a vida. Porque muitas vezes, ela está em suas mãos. Um bom exemplo a guiar os novatos de consultório pode ser São Lucas. Médico, artista e historiador. Com uma vida inteira doada ao conhecimento da verdade humana. Que a paixão pela beleza da existência também inspire você a cada dia, jovem médico, e te leve ao amor maior. Especialmente neste dia 18, dia do médico e de São Lucas, padroeiro da honrosa missão de curar.

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