Imagine chegar a um lugar e não conseguir conversar com ninguém, ficar isolado em meio a um grupo simplesmente observando. A cena, que parece fazer parte de um sonho ou cinema mudo, é a realidade de pessoas surdas nos ambientes sem nenhuma pessoa com conhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Elas são 5% da população brasileira e têm esse meio de comunicação reconhecido por lei, mas ainda passam por muitas situações constrangedoras. Em Goiás, 55.658 pessoas apresentam dificuldades auditivas, de acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Leonardo nasceu surdo, enfrentou e ainda enfrenta muitas dificuldades no dia a dia. Ele reclama da falta de acessibilidade, principalmente em bancos e em hospitais. As pessoas costumam tentar ajudar, porém o desconhecimento da Libras atrapalha o contato e ter a companhia de familiares ou intérpretes nem sempre é possível.
“É bom que o profissional de cada área saiba Libras porque facilita a comunicação com as pessoas surdas já que quem pode fazer a tradução muitas vezes desconhece termos técnicos. Além disso, nem sempre os hospitais aceitam o intérprete como acompanhante”, defende.
Na educação, os aspectos sociais e pedagógicos são marcantes na vida de qualquer pessoa. Os surdos precisam se esforçar para tentar compensar as limitações para se expressarem e serem compreendidos. Uma das iniciativas adotadas em Goiás para vencer esses desafios é uma escola bilíngue onde as turmas não precisam da mediação de intérpretes.
As aulas ocorrem no Centro Educacional Bilíngue de Surdos de Goiânia, uma unidade conveniada à rede estadual e mantida pela Associação dos Surdos de Goiânia (ASG). O currículo do primeiro ano do Ensino Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio é o mesmo adotado por colégios onde os estudantes são ouvintes.
Segundo a diretora do local, Alessandra Terra, é a primeira escola goiana nesse formato. São 55 alunos surdos matriculados, embora a capacidade de atendimento seja de 100 estudantes. Ela explica que nas escolas regulares, a presença do intérprete é um direito da pessoa com surdez.
“Seguimos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas com respeito à Libras como primeira língua e o português como segunda. Eles têm aulas de português, matemática, história, física, enfim, tudo o que qualquer estudante brasileiro estuda em qualquer escola, mas com a estrutura, metodologia e materiais didáticos diferenciados”, explica.
Cultura acessível
O zelo pela inclusão melhorou, mas carece de mais atenção em setores que exigem olhar diferenciado para essa população. Um show, por exemplo, é um espaço que os surdos poderão frequentar com auxílio da tecnologia. No início deste mês, uma adolescente surda conseguiu dançar no ritmo da música tocada em um dos palcos do Rock in Rio com ajuda de protótipo que capta vibrações.
Ao G1, Maria Rita relatou por meio da Libras que ficou emocionada e não conseguia explicar o que estava sentindo. “Foi a primeira vez que eu pude sentir a emoção, acompanhar cada ritmo, cada nota da letra, eu captava os sons e as vibrações pelo corpo através do tato. Quando o protótipo começou a funcionar eu fiquei muito feliz porque eu consegui sentir na pele a sensação”, afirmou.
A popularização desse tipo de aparelho ainda deve levar bastante tempo. O grupo com deficiência auditiva acaba se limitando a usufruir de poucas atividades artísticas com tradução. Os filmes com legenda em português já ajudam parte dessa população que foi alfabetizada em português.
No entanto, Leonardo diz que filmes nacionais não apresentam legendas e quando encontra amigos ouvintes para assistirem algum longa-metragem brasileiro, ele apenas acompanha as imagens.
Em Goiânia ainda não há cinemas adaptados para pessoas surdas. A situação deve mudar a partir de janeiro de 2023, quando todo o parque exibidor comercial deverá fornecer recursos de acessibilidade visual e auditiva em todas as sessões. Um exemplo é um aplicativo para smartphones que reconhece o áudio do filme e o transforma, em tempo real, em audiodescrição, legenda e Libras.
A gerente da Central de Interpretação para Atendimento em Libras da Secretaria de Direitos Humanos de Goiânia, Gessilma Dias, explica que muito já foi feito, mas muito ainda precisa ser melhorado. Ela reconhece que as adequações foram majoritariamente arquitetônicas,. O surdo interessado em ir a eventos culturais atualmente precisa convidar um amigo intérprete para fazer a interpretação.
“Há dois meses um amigo surdo queria ir a um espetáculo de humor e pediu à produção que disponibilizasse um intérprete de Libras, mas ignoraram os pedidos. Ele comprou os ingressos e me convidou. Fiquei uma hora e meia fazendo um trabalho voluntário de tradução para ele. A verdade é que não conseguimos avançar nesta questão”, destaca.
Oferta x Procura
Faltam intérpretes em diversos âmbitos da sociedade, embora a legislação garanta a prestação de serviços desse profissional para a comunidade surda. A própria Central que Gessilma gerencia não atende de forma integral por falta de equipe. São apenas dois tradutores para atender demandas judiciais, na área da saúde, culturais e bancárias, por exemplo, o que permite o trabalho apenas de forma online.
Na perspectiva da intérprete Myrele Cristina Ferreira, a inclusão é um processo que exige ajustes para ser concluído. Especialista na área, ela atua há mais de dez anos e frisa que os órgãos públicos têm o maior déficit de tradutores. A solução esbarra em dois obstáculos: demanda maior que a oferta de profissionais e remuneração incompatível nas vagas disponíveis.
“Em Goiânia, por exemplo, o intérprete é considerado um professor licenciado, enquanto em Aparecida é um administrativo, ou seja, o salário é desproporcional. Outra questão é a carga horária e especificação do cargo em desacordo com a função. Felizmente, a mídia e alguns cantores ajudaram a dar visibilidade para a língua de sinais. Se considerarmos a formação de intérpretes, nós esbarramos ainda na capacitação de profissionais. Atualmente, há apenas dois cursos superiores na capital e os câmpus ficam longe para a maior parte das pessoas”, pontua.
Etiqueta
Surdo congênito, Leonardo tenta driblar tantos empecilhos para viver sem limitações, como uma pessoa sem deficiência. Ele diz que os ouvintes costumam ficar impacientes quando tentam se comunicar com os surdos. A situação é mais comum durante atendimentos em instituições ou órgãos públicos. “É importante ouvinte explicar duas vezes para a pessoa surda porque a nossa comunicação é primeiramente visual. A nossa primeira língua é a Libras, sugere.